segunda-feira, 12 de maio de 2008

Perdendo tempo que não tenho


A segunda-feira é longa e fria, meu casaco é só longo, meu nariz é só frio. Vestida como uma andarilha peruana, espinhas feiosas mas quase discretas espalhadas pelo meu rosto, contrastando com as rachaduras frias nos meus lábios finos e secos. Esmalte vermelho descascado, manchado de caneta. Unhas roídas, cortantes, horríveis. Quero uma lixa. Quero um protetor labial. Quero tempo, para ver os filmes deitados em cima da televisão, para ler uns livros, pra absorver algum conhecimento distante da realidade atual na qual sou apenas uma estatística e fico mais idiota ao minuto. Por minuto. Não penso em mais nada além dos meus dedos ossudos e tortos, sem que nunca os tenha estalado, na voz suave do professor, que eu mal percebo, na minha inquietude da qual não consigo escapar. Mas posso fugir um pouquinho, de fininho, no meio de uma aula que não está prendendo minha atenção. Não. Não muda. Um punhado de água gelada no rosto não mudou. Adiantou mas não foi adiante. Nem tinha como. Não sinto fome, mas deveria. Meus devaneios todos voltados para um programa de tv um tanto interessante que serviu como desculpa para adiar um tanto mais meu sono. Instável. Instáveis os meus hormônios, as minhas olheiras, as minhas aftas e meus arranhões. Várias cabecinhas, como a minha, me rodeando, no que será  que estão pensando... Será que eles podem ler estampado na minha cara, que desperdiço meu tempo divagando sobre um semi-resfriado e meia garrafa de água velha, minha borracha de cupido, de volta a voz suave do professor, que vai e volta, cada vez mais alterada por minha deturpada percepção. Que percepção? Que idiota.  Aposto que a Clarice Lispector nessa idade escrevia contos, romances, histórias ao invés de perder seu tempo se concentrando em botar no papel as futilidades sem utilidades, sabendo que não serve de nada, não é vanguardista nem retrô ou clássico, só idiota, idiota e clichê. Esse chocolate na minha boca tem gosto de chiclete de tutti frutti e não sei se devo buscar algum sentido nisso. Isso. Nada é nada, tudo é matéria e eu sempre ansiei por doar meu corpo à ciência para causar em estudantes aqueles pequenos orgasmos que sempre quis e sei que um dia vou sentir, ao revelar os interiores de um de nós, controlando o bisturi. Minhas entranhas causariam gozo mental e espiritual que é impossível vivenciar sem pegar nas vísceras de um alguém. A maca fria de metal contagia o ar e estou deitada nela sem querer e sem poder evitar. Será esse o motivo do frio ser agradável? Por que, então, vivemos com medo de ser cortados metaforicamente? Porque não seguram bisturis, mas sim canivetes enferrujados. Não compreendem a beleza do sangue, da morte, da luz que nunca aparece. O ceticismo dos instrumentos cirúrgicos esterelizados. O cadáver aberto como a expressão mais evidente e bela do ateísmo. Do meu, não do seu, não das cabecinhas à minha volta, cérebros de metal. Como o meu. Como o seu. Que improvável. Nada serve de prova. Nenhuma idéia nova; nossos conceitos são química, reações químicas e elétricas: eis nossa genialidade, impulsividade. Nada é controlado e as cabeças do meu lado são exatamente iguais, as origens de seus pensamentos igualmente banais. Uma espécie de calvinismo da natureza que preferimos ignorar. Não eu. Nenhum tempo é perdido, as reações são as mesmas, a mesma. Reveladas junto ao cheiro de formol.

por lili

2 comentários:

taperjeangirl disse...

devo dizer que me identifiquei. talvez nao exatamente com toda palavra dita. mas na essencia; me identifiquei. e muito !
nao sabia que a senhorita andava escrvendo nesse blog ! bom saber.

A. disse...

tenho certeza absoluta de que a clarice lispector estava escondida atrás do bebedor rindo de voce, tao pequena comparada a ela, monstra imortal.

gostei do fim, com a viagem médica um tanto repulsiva. é tão bom quando o amontoado de clichês descritivos do arredor começa a render frutos e um dia imbecil ganha algo