terça-feira, 30 de dezembro de 2008

acontece

as pernas saindo
da pedra juntando
com as heras subin-
do a janela aberta
já esperando de
flores brancas e
cortina escancarada
mas o calcanhar
ficou preso e a
julieta ficou sem romeu.

lili

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

rosamond

[rosamond]
não enxergava por debaixo da franja.
seus gatos, entretanto, enxergavam
muito bem debaixo do seu vestido.

quatro pares de olhos amarelos
reluzindo diante daquela palidez
que um vestidinho azul mascarava
(na verdade, realçava, mas ela fingia não saber)

lili

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

"não mais que uma dúzia de mesas e um cliente que não gosta de falar"

(e, do mesmo modo
que um balão se esvazia,
as obrigações desapare-
cem e então eu crio novas,
forjando objetivos maiores,
suplicando por um qualquer.)

[lili]

domingo, 16 de novembro de 2008

'não essas turbulentas mãos torcidas, esse telhado escuro sem estrela"

como uma raquete de tênis ou um
vidro quebrado, eu brado e quebro
e peço por pés e acabo pisando em
agulhas.
só fogo saindo da boca e fumaça
pelos ouvidos, eu grito e
choro e
choro.

-lili

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Na mesa com medievais

Bando de
Bárbaros
de rosto liso:

Batendo martelos na
madeira, vestidos de
preto-da-lei,
brincando de ser
adulto, perdendo a
juventude.

Tão tolos quanto
sempre, com medo
de se cortar, sem
coragem para o sangue,
buscam refúgio nas coisas
"concretas"

Não vêem que é tudo
fumaça-e-espelhos
(e que a Noite ilumina as portas)

por lili

sábado, 1 de novembro de 2008

reflexões de meio de tarde

sem fôlego,
umas flores rosas eram borboletas
no vento
e as montanhas diminuíam à visão
das pessoas se divertindo
em piscinas
e hotéis.

na minha varanda só há plantas
cadeiras e
chão;
não me divirto tanto assim quando é sol.

-lili

terça-feira, 28 de outubro de 2008

para trás

Orgasmo se dissolve
em maresia.

De Ilhéus restou-me
apenas o porto
Algodão:
Tecido no coro.

Mas o chocolate,
ah,
o chocolate.
Era daqueles
de
derreter na boca.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

jesuítas

tão magra
aquelas calças, largas demais
o cabelo era verde e laranja
e chingavam "palito"
pelos corredores.

continua vagando e observando o sol de verão
entrando pelas varandas
e se sentindo
um absoluto
lixo.

por lili

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Querida

Os meus desenhos
no teto da sua
cama me comovem,
assim como o colar
e o cartão que ficam
na estante branca.
Fazes das maiores
banalidades um amor
imenso. Você é com-
pletamente memorável.

por lili
(para clara)

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

a solidão em convés ilegal

Barulho notável
Em pausa,
em pauta:
Silênciosa.

Nenhum anel para
musicar ao toque
daquelas grandes moedas de ouro.

Titubeio no ar,
não há valor.
Mas também, não há necessidade

Apenas do anel,
para meus ouvidos inférteis
se banharem
Em sinfonia metálica.


por anouk

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Uma carinha emburrada

Mau humor absoluto
Sonoplastias violentas
Me perseguem, impiedosamente
"Ai!", Ach, gritinhos de dor,
De insatisfação. Só mimo,
Dizem: que se fodam.
Que sumam todos diante
Da minha mediocridade.
Um gole nunca foi suficiente
Pra calar o mundo, mas
Vários certamente
Realizam o truque.
Pá! As autoridades ainda
Fogem da seriedade e
Me enervam com o furor
De um mauricinho rejeitado.

por lili

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Francisca-clichê


As garras regozijam
diante de ti, brincalhonas:
Arranhando, puxando, mordendo
Talvez beijando também.

E inicia-se o desmantelamento.
O fio rola, você
desenrola, os fiapos saltam
para flutuar nos cantos empoeirados--

"...o novelozinho caiu."

-lili

Gaveta Aberta

Passos largos sobre o chão de parquet:
Nunca estiveste tão bela e rosada,
carregando caixas pesadas em teus braços,
frágeis e delicados como a flor da lapela.

Envolvidas em plástico, deitadas
perto das janelas que chegam ao piso,
- Deixe as cortinas pra depois...
(Já que a paisagem não nos invade)

- Vamos à varanda, não está frio demais
para filar um cigarro nesse fim de tarde
ligeiramente cinzento; Ainda é muito bonito
aqui, por sua boca ser o destino da minha fumaça.

por lili

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Respiração por combustão

A molécula de oxigênio
De uma só vez é quebrada
então,
Uma enorme labareda
Levanta o vôo fenixiano

Tão alto
pássaro belo voa
que o fogo,
(maior gerador de vôo)
Como mais leve elemento natural
Se vê em lugar de limite

Então as cinzas caem,
Como a gravidade
E de tudo isso
que surgem,
os pombos mortos,
esmagados no asfalto.

conclui-se: Pombos nada mais são que fenix queimadas.





por anouk

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Bem Capaz

A valsa continua
no passo dos seus
goles na champagne.

Sentado numa mesa
fazendo bico, franzin-
do a testa; pedindo
amor de longe da
pista. Fatalmente
iria demorar, doce.

Mas seu drinque
virou uísque e seu
bico virou dentes.
Salva pelo gongo
do final da música,
pra ti eu corro com
abraços, beijinhos;

e nem ligo para o
bafo de puro-malte
com gelo e amargu-
ra pessoal: Te amo!


por lili

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Me Vestiam de Branca-de-Neve quando eu era Vandinha

O mórbido não é o abismo; O mórbido é a liberdade!
Não é escuro, não é a morte - é espuma dissipada no ar em forma de névoa, me faz etérea, permite que eu flutue sentindo as partículas do universo entrando nos poros.
Céu cinza, muita bondade.
Lago negro reflete o que você é:
Narciso Pessimista.
...Surge uma tulipa negra (e um campo de papoulas sangrentas-- saiotas!)
As pupilas dilatando até o olho inteiro estar como o ébano, absorvendo toda a luz do mundo.
Foi assim que Kafka viveu, e foi por isso que cedo morreu.

por lili

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Aquele pouco de nada

O pano listrado
que envolve meu pescoço,
não está ali para me aquecer

Apesar de fazê-lo.

Porque não puxa logo,
Pela ponta,
E acaba de uma vez essa volta?

Volta logo.

A regressão é dolorosa,
porém,
Aos poucos e levemente,
Involuntariamente [!]
Meu pé em ponta,
sobe minha perna,

Então aquele simples giro,
visando a volta,
torna-se eterna pirueta.


Bravo.






por anouk

Índios

Até o amor Alheio
me é sufocante.

Cores,
Flores,
Corações,
Poemas,
Sorrisos.

essas cores, essas
cores são como facas!

No meu
Livro de
Amor
Terá
Sangue

E moedas brilhantes, e
pés esquerdos e torturas macias.

...é o Amor que me foi apresentado!

por lili

sábado, 30 de agosto de 2008

Um passeio pela praia carioca.

Os pelos do Norte
não parecem atuar sobre mim.
Me falta calor.
Ou falta o frio,
para a vontade de me aquecer.

A imagem treme entre os carros,
a praia ao lado já não me atrai.

Tantos macacos lutando
por um pedaço de terra...

Ou tantas formigas, todas juntas,
trabalhando para o cancêr de pele.

Individualistas de merda.

Prefiro a pele branca,
da minha amiga Lili.

O cheiro de maresia, porém,
é quase orgásmico!
como aqueles dedos de salada
(oh, que dedos...)

Entretanto, tal aroma se dissipa
entre o suar de altinhas.
E caminhando ao lado de Iemanjá
Levo uma bolada na cara

E o candomblé perde todo o seu charme.

Sinto falta de Ilhéus:
Vesúvio de canela
E nosso caro Jorge, amado.
Transbordando por cada janela!
Iemanjá, Janaina, ou simples Maria,
Lívia sozinha.
Ensinamentos profundos

Que rolam na bola da altinha
E se perdem
No peitoral suado, de isac-garanhão.



por anouk

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Estocolmo

Foi passivo e lento,
Nazista!
Atormentou-me por anos
a fio, a esmo

Fizeste um porão escuro no carro
e nas viagens e cachoeiras -
O inferno foi morno;
"O frio é ilusão da matéria."

Eras um belo monumento,
Alta e Austríaca, a mão na enxada
(um Jaleco, uma Pauta)
e o sorriso Conquistador: Oportuno

Deu-me gosto pelas correntes
e chicotes de penitência gratuita
Que agora, sintomática,
aplico a mim mesma sem auxílio.

por lili

Fancha

Campo de papoulas inundado
pelo mar cinza de todas as cores.
Suas ondas violentas, tempestuosas
Azul escuro arrasador.

Bocado de flores, redemoinho:
Explosões desconexas!
Porções de vida no branco tecido
com furinhos metálicos; Covinhas!

São meras raízes
da árvore ruiva
de madeira rosa-escuro.

por lili

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Repulsa

Vem como mãos nas paredes,
pelas sombras, desajeitadas e
asquerosas, puxando o braço
Tic-tac Tic-tac Tic-tac

Cabelo amontoando na pia
Corta, morre, molha-
Me encara! Como um
assado de coelho apodrecido.

Há um ronronar no meu pé--
E a angústia, como uma mão
puxando-me agora pelas canelas,
me faz cair com a cara no chão.

por lili

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

"Os dias se passam como marinheiros..e os anos chegam como portos"

Essa queimadura
no tornozelo
não é memorável,
crê-se

(Sopra um assobio
pela tampa
de uma caneta)

A ferida é
atiçada pelo
toque;
Descascada-

Como as paredes
da velha
casa.

Venta um grito
do bule de café
ali,
no fogão

Mas não alerta
sobre a brasa
voando na pele.

por lili

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

as mariposas ficam confusas

o click da câmera, o
click da boca, o click
da fogueira, o click do
abajour sendo aceso

"Pour la France!",
ela grita
dentro do seu corte chanel
preto com franjas pesadas

Valentina está sempre
nua
por trás das câmeras,
tirando os cílios falsos.

por lili

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Urna

(eu) Choro cinzas
Pó até minha boca.
Descomandado
Me olho:
Nem morte,
nem vida
Nem mesmo cinza.
Incolor
Um pote de tinta
Meu olho seco
Vazio, e só.





por anouk

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

"E no momento pequena senti alguma morte"

a fumaça alivia a água dos pulmões,
mais uma vez se afogando.
ainda é dia, ainda é dia, e só um;
um atrás do outro.

apreensão, vá embora:
não é querida por aqui.

as veias pulsam enquanto
esse sangue aflito corre
E me mata, digamos,
de desgosto, nem tristeza

mas nervoso.


por lili

domingo, 3 de agosto de 2008

...

minhas maos tremem no mouse.
me mostre alguma beleza.

o que eu vejo pela tela simplesmente não é. Não conhece o verbo ser.

Aos poucos começo a desconhecer.
As pessoas esperam que eu tenha conhecimento,
e ele se vai conforme as vivências

Porque querem que eu conheça?
o conhecimento se passa até que me prendam em um caixão
a beleza que sobrevive vai além disso tudo


Eu só quero poder enxergar isso.

" A nossa fraca mente esconde-nos o infinito"





por anouk

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

mais do que todas as baleias do mundo multiplicadas por infinitas baleias

parece que quase todo esse amor vive preso, protegido dentro
de um grande caixote de vidro.
que por mais q me esforce; grite, chore, pule, beije,
perca todo o meu folego, recupere, perca,ciclicamente,
nunca conseguirei soltar todo esse amor. o caixote chega a rachar.
preciso de ar, mais uma vez. o pouco que se espalha ja extasia. mas eh o nada do muito.
o tal amor eh em parte encaixotado por um simples motivo: ele eh maior e mais forte
que qualquer ideia, ser ou coisa; seria impossivel suporta-lo.
mas no fim das contas, o caixote faz dele algo inesgotavel.imortal.

por manu.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

orbitando a siciliano

Estou em uma livraria esperando o tempo passar.
Tentando absorver a arte estampada em páginas de livros fechados. Não ouso abri-los

Não faço idéia do motivo disso.

Me deparo com títulos, um me chama a atenção:
" O mundo é o que você come "
Será que ando comendo pouco, ou será que como a coisa errada?
Meu mundo é um nada se comparado ao conjunto de todos os mundos. Ou meu mundo será demais? Tanto que não influência nenhum outro.
Meu mundo gira em torno de livros fechados.
Preciso de um estímulo para abri-los. A curiosidade, talvez.
Tarde demais; O tempo esperado passou e já é hora de mudar de roupa.




por anouk

domingo, 27 de julho de 2008

quatro da tarde em uma casa vazia


Uma mesa na varanda,
duas taças na metade:
uva e sangue
Os biscoitos já queimados
O glacê não escondeu 
a realidade
Mas as compras matinais
(o punhado de keep coolers)
compensaram e alegraram
a tarde quase vazia

***

4 da tarde,
São 4 da tarde 
vida alheia 
e Keep Cooler
nunca estive mais cool
vida alheia
me persegue,
um vício!
Que cool,
Vazio.
Uma gata
pelo por toda a parte
e biscoitos queimados
ganham fungos 
após  o forno
param no tempo: diminuindo.



por lili e anouk

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O Processo

O que houve esta noite
e na passada?
Estou cheia de fadiga.
Aquela dor no estômago golpeado
mascarada de fome indevida
Que madrugada!

por lili

quarta-feira, 16 de julho de 2008

reflexoes

O poder não te corrompe, só mostra quem você é de verdade. Parece que no fundo todos os seres humanos são iguais, mas nem todos tem a chance de se revelar. Isso só acontece porque alguns revelam, criando uma camada de falsa bondade naqueles que sofrem. Se tivessem a capacidade de usufruir dessa bondade - o poder - a camada logo se dissolveria.
Cada vez mais penso que nós não merecemos viver, nã só pela Terra cada vez mais sobrecarregada, mas por nós mesmos, que simplesmente nos torturamos.
Uma vez que sou humana, estou perdida.
Eu quero expandir amor. Eu quero o amor em todos os sentidos. Eu quero deixar rastros de amor para que outros possam amar tambem. Eu quero amar cada minuto da minha vida e contagiar as pessoas com esse amor, e assim eliminar o ódio. Antes que chegue a minha vez de me revelar e tudo se perca diante meu egoísmo. Porque é isso que acontece, e a gente simplesmente se acostuma.


por anouk

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Prognatismo Mandibular

Ossos, por que
Não me amam?
Nunca os feri;

Mantive-os longe
Do vinagre e 
Com tal força
Me traíram,

Assim como o
Fizeram com os
Reais Habsburgos.

Ó, matriz
Por que foste 
Pra frente
Tão desmedida?

Não sabes o 
Quanto me dói?
O espelho mais parece uma lâmina.

por lili

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Aula de física numa terça feira de meses atrás - Ilusões

O ambiente
é demasiado tenso
Mas não mente.
Eu que tenho falta de senso

Tamanha pressão
não pode fazer bem
Louca como um peão
Vou fugir, pegar um trem

Na estação
espero ansiosa
As malas na mão
A alma fogosa

Salto em Nova Iorque,
Do meu lado, uma puta:
Nem sei mais o que é torque,
mas parto pra luta!

Cinco anos depois,
sou bem mais feliz
Ignorância, ora pois
é o remédio, mas quem diz?

A lição que fica
No final das contas
é que sendo rica
Você segura as pontas.

por lili

segunda-feira, 7 de julho de 2008

"O primeiro esboço de qualquer coisa é sempre merda.", disse Hemingway

No fundo verde
umas peles um
veludo soturno e
vermelho como aquela
lula vampira
do inferno

Dois olhos
brilhantes no
asfalto quente
queimando e
fazendo bolhas
como na espuma
do mar eu sou uma
espuma no mar, tão
branca e insignificante e
quebradiça, quebrando
umas pedras por pura
teimosia e falta do
que fazer.

por lili

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Um caso médico

"Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?"

Quando menos esperava, vinha aquele soluço. Atravessava a garganta a um só movimento, e aí era um hic-hic que não acabava mais. Bem verdade que as crises de soluço não eram novidade alguma para Alberto, mas daí a tornar-se escravo delas era algo que não podia aceitar.
Quando pequeno eram tão raras quanto as complicações que lhe apareciam. Qual não foi sua vergonha ao beijar pela primeira vez Mariazinha; estava lá ele, em meio aos amigos e a toda a maturidade que a situação lhe exigia, quando... hic! hic, hic... Foi correr para casa e no quarto trancar-se o resto do dia, embora algo lhe dissesse que jamais poderia esquecer o que se passou.
Como encararia os amigos?
Mas caso pior foi a vez em que viu os pais brigando, coitado; em plena mesa de jantar, o lugar sagrado da casa, na hora sagrada... Num minuto perguntavam sobre o dia na escola, e ele contava suas notas e o que aprendera, mas mal havia levantado e já estavam a discutir aos berros! Que ao menos o fizessem longe dali, onde os gritos não pudessem ecoar pelas paredes e apertar o seu coraçãozinho de menino. Mas não fizeram. O pequenino não resistiu à mágoa, que lhe fugia em ininterruptos soluços, e juntos atravessaram toda a noite. Até um médico foi chamado para cuidá-lo, mas pouco pôde fazer; era inexplicável o caso dele.
Foi tentando evitar possíveis vergonhas que o jovem se privou de tudo que lhe cercava: privou-se de emoções, de amores, privou-se de lágrimas. E, pobrezinho, ficava no quarto, a luz quase sempre apagada, a assobiar e cantarolar das tristezas as mais melodiosas.
Mas se não podia esconder-se para sempre, como sobreviver? E o desejo de aventura e de vida que pulsava no peito, latente?, e a vontade de amar... Que contradição o afligia! Tão mocinho, o que não deve ter sofrido...
Eita, mundo perverso! Não fossem tão cruéis as pessoas e o garoto talvez não penasse tanto em se expor; se não o julgassem tanto, talvez... Era aceitar ou fugir. E embora soubesse que nenhuma fuga, de fato, liquidaria o problema, foi a saída menos dolorosa. Se engana quem pensa que um homem pode passar a vida a fugir. Não pode!
Mas só foi perceber isso certa noite, quando recebeu um sinal. Ou pelo menos era o que acreditava. – Mas o quê que é isso?!!– Quando já tarde, na solidão do quarto, viu subir sua perna um percevejo, tão pequenininho que dava pena o esforço que fazia. E pra que? O que ele ganharia? Saberia que lá no topo nada havia que o agradasse, a não ser, talvez, a vista? Poderia até morrer se caísse!... – Não tem medo não, amiguinho?, mas ele não respondeu... Diria o quão difícil foi enfrentar seu medo. Mas se não o enfrentasse, o que seria dele; a que lhe serviriam suas firmes patinhas, sua durinha carapaça, suas fagueiras antenas? Percebeu que a eterna fuga não mais o satisfazia. Se não para enfrentar o medo, e tudo aquilo que o limita, para que serviriam esses longos braços e essas fortes pernas? Se o angustiante ciclo das desesperanças se mostrava infinito, só cabia a ele rompê-lo. E estava decidido.
Naquele sábado de manhã, abriu a porta da frente, ainda cedinho. Com os olhos bem arregalados viu toda a luz e todo um universo de possibilidades que o esperavam. E depois, viu o medo; os malditos soluços. Mas desta vez não sentiu aquela alucinante vontade de agarrá-lo pelo pescoço e para longe arremessá-lo. Desta vez pegou em sua mão; sabia que ele estaria sempre próximo. Então, saíram os dois caminhando.

por san
Porque andas calado, meu filho,
Quem o puseste aí?
Fizestes algo terrível, menino,
Porque não estás a sorrir?
E esses versos no chão
Porque não os publicou ainda?
Que esboços de vida são esses, menino,
Diga, meu filho, não minta?

– Foi escolha minha, meu pai.
Disseram-me que não presto,
Que não sou comum o bastante,
Comum como todo o resto.

– E essa minha jaula, pai meu,
Forjei-a com o próprio medo,
E a vida ainda restante
Guardei-a com os livros na estante.

por san

"Mas acho que o grande DiMaggio se orgulharia hoje de mim"

Sonhava que nadava no universo. As estrelas pareciam luzes natalinas, em volta da fogueira aconchegante do Sol. O vácuo do éter entorpecia seu corpo e seus sentimentos enquanto flutuava livre, sem a massa da Terra mantendo-a presa ao chão. Chão. Voltou a sentir a cama lhe sustentando. Eram 7.43 de sábado - a insônia crônica fazia com que ela acordasse um bocado mais cedo do que gostaria - e o sol invadia seu quarto pelas brechas da cortina, contrastando com a brisa fria que trazia consigo. Se movendo o mínimo possível, alcançou seu laptop na mesa de cabeceira, ao lado do controle remoto - apanhou-o também. Entre espreguiçadas, ligou a televisão e desligou o celular; Não queria ouvir ninguém hoje. Infomercial, desenho, comercial, videoclipe, filme, filme, documentário, filme. Aquele acabara de começar, fato que, independente do que viria a seguir, tinha o poder de prendê-la até até o final. 
10.16. A tv era ignorada enquanto jogava o que parecia ser a milésima oitava partida de mahjongg . Fechou o computador em sinal de desistência. Rolou debaixo do edredon e observou por alguns momentos seu amplo quarto, predominantemente branco, com estantes repletas de livros, revistas e discos roubados de seu falecido pai. Caminhou arrastando os pés até as imensas janelas , que iam de poucos centímetros abaixo do teto até o chão; faziam-na se sentir pairando sobre a paisagem. Afastou as escuras cortinas com cuidado e se permitiu absorver o sol ainda matinal. 
12.32. Agarrada ao lençol na posição fetal, soluçava entre gemidos de dor; seus olhos ardiam. Lágrimas tardias caminhavam do meio do pescoço até a gola da camiseta. Ainda não havia comido nada naquele ensolarado dia de inverno. Sentia sangue imaginário sendo estancado por uma faca imaginária alojada em sua barriga ferindo o estômago, onde a morte é lenta.  Balbuciava seus pensamentos e voltava aos prantos. O intervalo entre as crises era de uns poucos minutos - até acabarem, pouco mais de uma hora.
13.58. Bebericava água velha de um copo que estava em cima da cabeceira da cama desde a noite anterior. Seu rosto não tinha expressão alguma - se não fosse pelo movimento manual que fazia ao mudar de canal, seria fácil deduzir que estava catatônica.
14.24. Apoiada na janela, acendia com dificuldade seu Parliament com um zippo prateado e mais estreito que o normal, que herdara de um velho namorado. Inspirava a fumaça profundamente, deixando-a invadir seu pulmão em seu estado mais dilatado; Sentia a pressão baixando aos poucos e o frio se tornando mais agradável. A fumaça era sua amiga - fazia com que ela se sentisse acompanhada e consolada. Observava o mundo em sua paisagem emoldurada por anéis de fumaça nicotinada, que garantiria um ar noir à sua visão caso já fosse noite. Sentia seu corpo leve e vazio; o cigarro escorregou por entre seus dedos e encontrou repouso no centro do cinzeiro. Sentada no chão, encostada no vidro protetor da parte inferior da janela, perdeu o ar e chorou.
16.37. Adormecida no chão, envolvida pelo edredon (que fora arrancado da cama com desleixo), as pontas do dedo quase tocando o pôr-do-sol gélido. Sonhava que voava dentro da piscina de Gellért.

por lili

"É doce morrer no mar"

por anouk

Quero aprender a amar como Vinícius. Não importa se 9 amantes ou um só a vida inteira. Quero aprender a eternidade de momentos singelos, amar um gesto. Uma unha que for. Quero banhar o mundo com esse amor, e assim fazer sorrir almas congeladas. Porque é isso que importa, e é para isso que estamos aqui.

Ela falava com o ar, a mercê de uma janela –no fim sempre nos resta a moldura de janelas- Se ao menos houvesse alguém para amar... Era noite de lua: Postes acessos em vão nas calçadas já iluminadas, convidando-a para uma volta. Tinha compromissos cedo no dia seguinte, não podia se dar esse luxo. O amor bombeava seus pensamentos, prestes a explodir pelo nada. Era preciso compartilhar tal sentimento misterioso porque sabia que aquela noite era para isso. Sim, a noite era para isso; Esperar seu Guma em cais baiano, seu Romeu em sacada branca.
Chega de sonhar. Foi arrumar as coisas para a manhã que se sucederia -cada vez mais perto -Agenda, carteira, onde estavam as chaves? Procurou na bagunça da estante, ao lado da televisão. Lá estavam elas, jogadas em cima do Box da Audrey Hepburn. Apenas um filme em seu lugar, os outros dois perdidos pelo flat. Segurou aquela caixinha de papelão, presente de alguém já longe. Sentou na cama. “A princesa e o plebeu”. Um romance em Roma. Esticou o pescoço como se espiasse a janela: Aquele Botafogo sufocante.
Valeria a pena assistir aquele filme de novo? Estava cansada do papel de telespectadora. Deitou-se. Amanhã estaria mais uma vez naquele escritório de paredes finas. Contabilidades inúteis. As mesmas pessoas esnobes de hoje, carregadas das mesmas piadinhas sem graça. Olhando o teto reparou a poeira acumulada nas abas do ventilador. Ventilador de duas abas, idéia simples, estaria aquele design rico? Passos barulhentos do andar de cima. O bebê nunca visto chorando mais uma vez. Porque ele estava sempre chorando? Ela passou a imaginar seu rosto. Bochechas rosadas, aquele cheirinho gostoso. Sua vontade era subir as escadas e pegá-lo para si. E assim amá-lo acima de tudo. Amar tanto, e de amor transbordar.

Deixa de besteira.

Abriu as portas do armário por algum impulso desconhecido. Pegou aquele vestido, há muito não usado. Vermelho de bolinhas brancas: Alguém a amara dentro do tecido rodado. Vestiu-o, pintou o rosto e calçou seus mais belos saltos.
O mar longe se medido em passos, a sacada; Uma janela pequena e alta de mais. Resolveu então sair de casa: A busca por uma taça de vinho francês, e quem sabe por uma Tiffany, para brilhar diante da vitrine.
Por que ela sabia que essa noite era para isso.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Antes do dia 30.

Eu já estava exausta. Não parava em casa fazia três meses ou mais. Minha memória começava a falhar, porém não havia necessidade dele repetir a frase pela sétima vez. Sete vezes. A única lembrança que restou dessa época. Um número não dito, um número contado de uma frase repetida. Uma frase em vão.
A chuva molhava-me até os ossos; não minha alma - esta já estava ausente. O som da voz dele era ouvido mas não registrado. Já era noite, a cidade parecia ainda mais suja. Andávamos por becos, engolidos por prédios imensos. Nosso objetivo era se afastar, mas eu já estava exausta: Queria chegar. Uma recepção, qualquer que fosse. O ar empoeirado machucava meus olhos. Sentia as lágrimas escorrendo vermelhas, assim como sentia os arranha-céus arrancando minha pele. Com o canto do olho, sabia que ele sequer olhava para mim. O que ele queria? Para onde me levava? Quando saí de casa pensava conhecê-lo e ali, de pernas cansadas, reconheci um desconhecido. Precisávamos de um lugar para comer e dormir.
Paramos no primeiro pé sujo que apareceu no nosso caminho desorientado. Fui servida de uma cachaça para fortalecer a alma. Enquanto virava a dose, pelo fundo do copo observava seu olhar de reprovação. Idiota. Aquele terno engomado já estava imundo, não havia necessidade de tanta pompa. O garçom voltou mais duas vezes antes de finalmente pedirmos algo para comer.
Os velhos sebosos depositavam suas esperanças em fliperamas com sons ensurdecedores. Gira, gira, ding ding ding, moeda, click. Luzes coloridas tornavam-se escuras ao entrar em meus olhos. Tentava ignorar. Filé com fritas, muito ketchup. Ele me olhou com um ar de repressão. Consegui ignorar. Comi com vontade. Ele mordiscava seu bife misturado ao feijão com repulsa. Bem feito. Agora teria que se acostumar com esse estilo de vida; o mesmo que eu tive que aprender a aguentar há não muito tempo. Mais uma cachaça. Fazia sentido se afastar? Ele mandou maneirar no dinheiro. Eu disse que nada disso estaria acontecendo se não fosse por ele. Não me preocupava pois sabia que ele tinha dinheiro no banco. O garçom tinha gostado de mim, se ele não quisesse pagar eu dava um jeito. Mas sabia que não seria necessário; ele não me deixaria fazer isso nem por ele, nem por mim. Seus olhos tristes buscavam conforto discretamente, mas os meus estavam apenas cansados e sem vida. Eu não tinha nada a perder fazia anos; Ele não. Havia construído uma vida para poder respirar melhor - a mesma vida que esmagava-o enquanto ele se cortava emocionalmente, diante de mim numa mesa de plástico amarelo. Eu não podia sentir pena. Fora ele, ele que nos trouxera até ali. Isso não podia fugir da minha memória. Tudo menos isso. Minha memória de fragmentos. Será que alguém me procurava? Quem me procuraria? E à ele? Toda aquela vida em vão, objetivos destruídos. E por quê? Pelo o que?
Saímos dali, eu bêbada, ele miserável. O som das moedas no copo do mendigo cego da esquina me era familiar mas não sabia o porquê. Minhas mãos ardiam - como não havia percebido antes? Uma porção de pequenos cortes e marcas vermelhas. Hematomas no pulso esquerdo. O que significava tudo isso? Podia sentir as lembranças indo embora antes de se concretizarem, assim como sentia que o nascer do sol não chegaria tão logo quanto eu queria. Precisávamos de um lugar para dormir.
A rodoviária não era longe. Dormiríamos no ônibus. Não podíamos parar de seguir. Malas para todos os lados, aquele relógio redondo me observando. Passamos por um espelho: só a roupa do couro. Que ônibus sairia mais cedo sem nos custar muito?
Seguimos para Minas Gerais.
As poltronas esburacadas e sujas irradiavam luz e conforto para meus olhos. Semi-deitados, dois zumbis. Mesmo exausta, demorei a cair no sono. A paisagem noturna corria rapidamente enquanto eu mirava o mundo pela janela (que, em um ato de cavalheirismo, ele cedeu para mim.) Olhei para ele. Já dormia. Queria registrar aquela imagem para sempre. Beijei seu rosto, ele sorriu inconsciente. Queria a eternidade naquela estrada, que ela não acabasse. Ignorei a proximidade de Minas, encostei minha cabeça em seu ombro e vivi, porque era o que me restava fazer para jamais perder aquela imagem. Adormeci. Acordei com ele me chamando - o ônibus havia parado. Pela janela, via o sol se derramando pela paisagem não familiar. Saltamos e voltamos a andar para o Norte, a referência mais precisa que tínhamos naquele lugar. Munidos com uma garrafa d'água e um par de óculos escuros para cada, já estava conformada com o vazio. Percebi, no entanto, que estava sozinha nesse sentimento, quando pude observá-lo ajustando a gravata em vão - não para ele. Aqueles pequenos vícios, como manter o cabelo penteado e nunca desabotoar a camisa faziam-no esquecer um pouco a situação que havia se instalado em sua vida. Chegamos ao centro da cidade, procurando algo para comer e um modo de repor a água do cantil.
Entramos em uma loja com atmosfera caseira. Com minha melhor voz de menininha, pedi à velha atrás do balcão por um banheiro e um pouco de água. Ela nos ofereceu um banho. A ducha morna deu um ânimo em nossos espíritos - éramos agora um par apresentável, ligeiramente mais dignos. Agradecemos a senhora mais genuinamente do que jamais havia agradecido alguém. Saímos com os cabelos molhados e a garrafa cheia.
Parados na calcada do centro de cidade desconhecida bebendo água para seguir ao Norte. Norte por falta de opção? Eu queria o Norte: subir, crescer. Chega de regressão. Finalmente eu sorria voluntariamente. O abracei, ele não parecia tão feliz.

- E agora? O caminho não é longo mas os desvios são muitos. Está me ouvindo? - disse ele, se afastando do abraço.
- O caminho da minha ambição é sempre longo.
- Parece que estamos encurralados nesse encruzilhada há dias, há alguns anos. E você só anda pra onde a minha mão aponta.
- Pra onde você quer que eu ande? Você que tomou essa decisão de fugir!
- Precisamente. Ando tomando todas as decisões, por mim e por ti. Não podes se prender assim pra sempre. Aprende a se cuidar sem mim.
- Ótimo! Você acha que eu não posso me cuidar sozinha! Vai embora, volta pra sua vidinha medíocre de paletó. - fui me acalmando gradativamente - Não é isso que você quer? A essência da nossa fuga se diluiu. Já não sei mais do que fugimos. Eu só quero chegar e meu caminho é ao norte. Volta, você tem uma vida que te espera.

Pela sua hesitação, sabia que as palavras que se seguiriam seriam pronunciadas cuidadosamente.

- Você sabe pra onde seguir? - mais uma pausa. - Vai precisar de recursos.
- Você sabe que eu me viro.

Ele me abraçou forte. Seus olhos se encheram de lágrimas mas sua dureza não permitia que as deixasse rolar.
- A gente se fala.

Ele deixou seu paletó e algum dinheiro. Deu meia-volta, eu segui na direção oposta. Chorei, mas sabia o que fazer.
Havia chegado no meu destino. Estava ao Norte; no início de uma ladeira. Subi ansiosa e me deparei com um imenso pasto de grama verde. Me deitei e esperei a noite, apenas pela visão familiar; Uma recepção gelada porém eterna, escura e iluminada.

por anouk e lili

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Minha vida é uma Harpa sem cordas

O maestro me deixou
morta, ao lado
da cortina.

Não mais me conduz;
continuo ali,
aqui
desfalecida

Meu pé se arrasta,
Ouço o silêncio
dos seus dedos
sempre titubeantes

Pela janela
da salinha
os arbustos secos;
ainda havia orvalho na grama

As notas soltas
me dissipavam
com sua indiferença,
ali no chão

Com toques de letargia
me assassinei
envenenada
Onde estás?

No fim do palco
fui esquecida
ainda viva

por lili

terça-feira, 10 de junho de 2008

Lá fora é uma selva

- Lá fora é uma selva, meu filho! você nem imagina os perigos que te esperam, respondeu a mãe num tom ameaçador, como se o terror psicológico ainda o atingisse. Mas Paulo já estava acostumado; nem se assustava mais. Porém rebelava-se (Calava mas não consentia). “Aquela ditadora! Acha que tem sempre razão”.
- Mas mãe, eu já tenho 12 anos, já sei me cuidar. Além disso, o papai sempre deixa.
- Então você pede pra ele quando ele voltar de viagem...
- Isso não é justo mãe, além do que hoje é sábado – disse ele num último suspiro, tentando em vão impedir que ela desviasse a atenção. É Paulinho, é um mundo injusto mesmo...
Mas que fazer? Todos os amigos o esperavam para a partida de futebol. Com olhos transbordando melancolia, o menino subiu a escada que levava a seu quarto, deixando para trás uma cachoeira de lágrimas. Passada a tristeza inicial, o menino decidiu-se: não deixaria uma “infantilidade boba” de sua mãe atrapalhar o jogo. Cobriu uns travesseiros que tinha com um cobertor velho e, cuidadosamente, saiu pelo parapeito da janela, descendo até o andar de baixo pela calha lateral. Na esperança de que sua mãe não descobrisse a fuga, seguiu caminhando bem vagaroso. “Não foi tão difícil assim”. Enquanto caminhava, o medo de ser descoberto deu lugar ao orgulho. Deu-se conta do que havia feito, e não se arrependia. Afinal, julgava-o certo. Por fim, sentiu-se pleno, dono de si. E os amigos, então, que diriam?
Levando em conta os devidos exageros juvenis, não é que o garoto manteve-se bastante fiel à história. Um heroísmozinho aqui, um martiriozinho ali, e lá estava ele, entre os súditos, poderoso. Usou e abusou do dom que tem os rapazes de transformar em epopéia qualquer simples fato. – que selva que nada, mãe – pensou. No fundo, queria convencê-la. Por isso estava lá. Não importava se jogaria futebol ou brincaria de bonecas. Queria libertar-se; chegar em casa e jogar na cara – viu mãe, voltei, inteiro!
Passada a glória, foram ao jogo. Contagiado pela emoção que o havia tomado, o garoto estava impossível; pegava a bola na defesa, queria atravessar o campo sozinho, driblar todo o time e ainda marcar o gol. Esses meninos... Assim terminaria a partida não fosse o pequeno Joaquim atirar a bola com assombrosa violência matagal adentro. Como mandava a etiqueta dos rapazes, “quem isolou vai buscar”. E lá se foi Joaquim.
Assustados com a demora do amigo, preocuparam-se. Entraram todos na mata para procurá-lo.
- Pessoal, vem ver o que eu encontrei!
Era ele; Preocuparam-se ao ver o amigo curvado, no chão, como se algo o tivesse atingido a barriga.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele não respondeu. Estava debruçado sobre um passarinho, miudinho que só ele, cutucando-o com sua impiedosa vareta. A chegada dos amigos só piorou a situação do pobrezinho, que agora era importunado por vários ao mesmo tempo. Na verdade, Paulo até comoveu-se com os gemidos que dava o bichano, mas não ousou falar nada. Não podia deixar que duvidassem de sua virilidade, sua macheza. Pareciam se divertir tanto vendo sofrer o animalzinho. Ou não teria nada daquilo a ver com o coitado, e sim com cada um dos rapazes, impelidos a lutar num cruel ritual de auto-afirmação? Paulo, como saber...
Ao anoitecer, todos partiram; só a culpa restara. E Paulo. Precisava redimir-se; calara e consentira quando o pequenino mais precisara. Esperou mais um pouco, até que os amigos não mais o pudessem ver. Ajoelhou-se no chão, e arrependido, sussurrou:
- Onde está sua mãe, passarinho?, você não devia ficar por aí, sozinho – aqui fora é uma selva!
Pegou-o suavemente e o devolveu ao ninho.

por san

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A moça da lanchonete

O despertador tocou. Ela estava cansada de levantar da cama apenas pela inercia do cotidiano; Mais um corpo em vivência. Sentiu o gelado do chão de pedra em seus pés, três passos à frente, e cinco à direita. Continuava nua pelo costume de dormir assim, agora já na cozinha. Tomou seu café lendo jornal, se vestiu e saiu com pressa. Pernas aceleradas, pressas em short curto, quase nulo, desconfortável, mas era uma exigência do patrão. Apenas em dias de inspeção sanitária usava avental e toca, afinal seu corpo amostra era o marketing da lanchonete. Andava os quatro quarteirões para chegar no trabalho. Passava pela mesma obra, parada a meses. Via os mesmos rostos parados no ponto de onibús, observando-a passar. Mesmos rostos, todo dia, nenhuma palavra, nem mesmo sorrisos de ambos os lados. Estava cansada desses rostos. Estava cansada da obra parada. Nenhuma mudança, como se os dias passasem independente do tempo. Chegou na lanchonete. Recebeu um tapinha do patrao na bunda como saudação de bom dia. Sorriu falso. Fazia mais isso que fritar hamburgueres naquela lanchonete suja. Os músculos de seu rosto estavam exaustos desse exercício. Sempre os mesmos fregueses, primeiro, sempre pontual, aquele senhor de barba grisalha, sorriso torto e voz falha:
- O café de sempre princesa!
Princesa. Para esse senhor de dentes sujos ela sempre fora princesa. Princesa de que reino? Princesa das moscas. Princesa da lanchonete gordurosa. Princesa do café de sempre. Café cheio de açucar para o homem diabético. Como ela queria que ele realmente fosse diabético, para assim um dia não aparecer mais ali. Virou-se para a cafeteira, sabia que o homem aproveitava para analisar suas pernas nuas. Voltou ao balcão, agora eram dois.
- Me vê aquela coxinha gata!
Os homens multiplicavam-se ou substituiam-se de acordo com os ponteiros do relógio velho na parede empoeirada. Serviu a coxinha, recebeu umas moedas de gorgeta e uma piscadela. Sorriu falso. Olhou o relógio: 11:30. Sabia que em cinco minutos chegaria aquele jovem sempre usando boné e correndo, atrasado. Já separou o refresco e a esfirra de sempre. Sempre. Tudo sempre de sempre. Então o menino surge da esquina na hora esperada. Seu lanche no balcão em uma fração de segundo. Agradeceu a eficiência com aquele jeitinho assanhado:
- Esse refresco só não é mais doce que você, valeu gostosinha, té amanhã!
Ela sorri falso, e o menino vai sumindo, da mesma maneira que surgira. Já era quase meio dia, hora de seu almoço. Odiava comer cedo assim, mas não podia perder a hora de almoço dos clientes. Pegou um salgado e um refresco e sentou numa mesa. Não tinha vontade de sair da lanchonete, a rua era tão suja quanto ali, estaria tão sozinha quanto ali. O patrão saiu para comprar cigarros, era um alívio. Mastigava devagar. Olhos fixos, como se não pensasse em nada. Voltou para o balcão, agora sua tarefa se resumia à fritar hamburgueres e batatas. Gordura para todos os lados. Seu rosto ficava oleoso e o calor insuportável. Os clientes passavam a chegar em bandos, sentar em mesas. Balconista, garçonete e cozinheira. O patrão dizia que contratar mais um funcionário seria o salãrio dela pela metade, então ela corria. Agora os apelidos tornavam-se insultos.
- Corre vagabunda! Não tenho o dia inteiro!
A louça ia se acumulando na pia de acordo com o entra e sai da clientela. Lembrar do ketchup, do guardanapo. Este café com adoçante,o suco com açucar, juntar mesas, esquentar salgado.
- Garçonete burra, eu pedi um pastel de queijo!
E a burra troca o pastel de carne pelo de queijo. Mais ketchup. Gorjeta medíocre.
- Se esforça mais amanha lindinha! - Aquele sorriso irônico.
Ela olhou para a gorjeta em sua mão, olhou para baixo. Sorriso falso.
Gostosa, Gatinha, Vagabunda, Burra e Lindinha. Seu dia se resumia a criatividade dos homens. Era única a figura femina, o dia inteiro naquela lanchonete, e dona de milhares de apelidos. Já não lembrava o nome de certidão pela falta do uso. Se recusava a olhar algum documento só pela falta de memória. Mas o esforço mental fora incapaz de resultados. Tentava lembrar de sua mãe lhe chamando, mas a figura dela já se apagava. Conformou-se com os apelidos; Um corpo sozinho não carece de nome.
Eram oito e quinze quando o último freguês foi embora. O patrão fechava o caixa enquanto ela acabava de lavar a louça. O cheiro de gordura se concentrou, era a respiração do chefe nos seus ouvidos. Os lãbios finos tocaram seu pescoço. Ela não queria isso, não de novo, mas precisava desse emprego; Continuou lavando a louça. Não mais um sorriso falso, sorriu de desespero. Aquelas mãos calejadas de passar o dia inteiro no caixa desenhavam suas costelas com força, juntando-se no esterno. Doía, ela fingia que gostava. Os dedos chegavam à seu busto privilegiado e apalpava-o por baixo da blusa. A levava para cima do balcão, beijava-a com brutalidade. Era sua presa. Delicadeza desprezível naquela alma pervertida. Despiu-a e abriu suas pernas com um sorriso de conquista.
- Feche tudo e não atrase amanhã. - O patrão falou fechando o ziper da calça e se dirigindo à saída.
Ela ficou um tempo deitada no balcão sem se mexer. Seu short no chão gorduroso. Ouviu barulho de chuva, ótimo, chegaria em casa enxarcada. Fechou o lugar sem pressa e caminhou lentamente para a chuva. Continuou no mesmo rítimo; Não fazia sentido chegar em casa rápido para um banho se a água da chuva era mais forte que a do chuveiro. Lambia o salgado de seus lábios. Não destinguia chuva de lágrimas, já nem sabia se chorava. Andou as quatro quadras, passou o ponto de ónibus, a obra parada. Passou da entrada de sua casa. Andou até não reconhecer mais a paisagem. Sentou a beira da estrada, deitou e se perdeu em pensamentos.
Morrer sozinha na chuva não é a pior hipótese, é ter o céu inteiro para chorar a minha morte.
Riu. Lembrara seu nome. Se dirigiu de volta à sua casa. Dormiria como há muito não dormia; Com vontade de acordar.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

O jantar de ontem

A tosse do meu pai é alta demais. Ele tosse desde que voltou de viagem.
Ontem o jantar começou como sempre: Eu tagarelando empolgada com os olhos brilhando pela comida saborosa, minha irmã declamando a saúde em seu prato, meu irmão morrendo de sono, Thiago sorrindo pela falta de verde na salada.
A televisão ligada. Dessa vez poupando-nos assunto. Meu pai vidrado em outros momentos que não o seu. Momentos interpretando o nosso. Ele provou o bife, mastigou.
Mastigou.
Sua expressão não foi das melhores.

- Não gostei desse bife não...

- Então não come, e para de fazer essa cara! - Minha mãe respondeu sem pausa.

O jantar continuou no silêncio. Era domingo chuvoso. Ela continuava de tênis de corrida impedida de correr pelo tempo. Tirara o dia anterior para as compras. Comprou o bife pensando no meu pai, ela mesma não faz questão de carne,
só faz questão de correr.
Porém, não correu com a comida. Todo o cuidado. Única atividade do dia:
Jantar com todos os membros da família; Pai, mãe, filhos e agregado.
Momento divino:
Silêncio.
Silêncio não por respeito.
Silêncio denso que preocupa e torna os movimentos automáticos e pesados. Aumenta a pressão do ar nos rostos; Rugas de preocupação.
Preocupação com o que?
O nada do silêncio.
A falta de assunto preocupa.
Não meu pai, mas sua tosse, alta demais.


por anouk

terça-feira, 27 de maio de 2008

Acabou concluindo que era a sua mão que estava doendo


Toda vez
que uso o estepe
idiotamente
bato a cabeça:

Nada mais
que
coerente.

Uns socos
nas têmporas
de repente
rotineiros

Me dizem 
que o sol
ainda brilha

Foda-se.


por lili

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Remotos tempos de saquê

A lembrança se dissolve
Que pena.
Flutua lenta
Ao chão.

Levanto.
Não encontro
O concreto
Que sangra meus dedos

Gaze,
Sinto-me múmia
O movimento se resume
Ao nada

Em nada, permaneço
Abraço o bege,
Grito por vermelho, enquanto
O tempo destroí

Os passos não dados
Fala coreografada
No silêncio,
Descolorido

Dedos machucados
Esmalte cor-de-rosa
O sangue escorre
Leva minha cor

Me encontro,
Sou o nada
Permaneço parada
Suplico por movimento.

por anouk

tirado da cortiça


Será que o papel
sente o gosto
da tinta
na pele?

Na língua
eu sinto
o azul
roxeado

O vácuo
que prende
asfixia
divertida

plastificada
roçando no
céu da
boca

Círculo
Cíclico
em alto relevo
sensível

Me faz sentir
o primeiro
gole do
café


por lili

O Caule do Ocotillo


Como o barulho
de ossos roçando;
Facas afiadas

Seus braços espinhosos
me envolvem
se espetando
mais que a mim

Freadas bruscas
Uma caneta falha
por entre meus dedos

Ninguém escapa
Há lascas pelo chão
Inofensivas,
eu juro.


por lili

sem titulo2


Afiada como uma
Arma
Essa ponta

Esse ponto
Metalingüístico
Preto piche com
Madeira cinzenta

Me expressa
Impressa
Essa ponta

Essa agulha
Me retalha
À flor da pele
A folha de papel

Não morre
Na minha mão
Essa ponta

Não é falha
Perfeitamente substituível
Sempre se perde; e volta
Com outra cara

Essa ponta
Se arredonda:
Me liberta


por lili

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Pasta


Primavera chuvosa
Chove, molha, chora
Chega
Chega dessa angústia sem razão
Terra molhada
Meu tênis sujo
A planta chorando
Não é a água que a alimenta?
Por que choras então?

por anouk


Bette Dieter, estrela do cinema mudo alemão nos anos 20. Fumava como uma caminhoneira e assim acabou matando seu marido, o magnata dos jornais Wagner J. Hirsch , fumante passivo por cinco anos e dono de um pulmão fraco. Após virar viúva, tornou-se uma alcoólatra libidinosa e para identificar seus amantes da noite anterior, queimava-os com cigarros em lugares estratégicos. Em poucos meses, sua ex sogra passou a monitorar suas noitadas e compartilha-las com o público através dos jornais que possuía, revelando a todos os motivos por trás das estranhas queimaduras nos pescoços e braços dos mais diversos homens do show business. Bette, indignada, resolveu solucionar o problema e salvar sua reputação: seduziu a também viúva e irmã de seu amado e falecido marido, Hilda Hirsch. O caso das duas foi notório nas histórias de backstage, mas graças à influência da nova amante, o público nunca soube. As duas acabaram largando tudo (levando apenas o dinheiro, é claro) e fugiram para a Ilha de Lesbos, na Grécia (mais apropriado, impossível). Morreram juntas, tomando cicuta e absinto e se jogando no mar; nenhuma queria ser viúva de novo.


por lili

quarta-feira, 14 de maio de 2008

7


Indefinido
Névoa sem chuva,
sem sangue
nem vida

Indefinível
A medula frágil
mal se mexia
quando saltou do trampolim

Cada fibra absorvendo
as águas negras
e tenebrosas
que saem do chão

Antes o sangue
aos pingos vazios.

por lili

terça-feira, 13 de maio de 2008

sexta feira


Romantismo em Roma
Rômulo e Remo
Não poderiam ser mais opostos:
Um era hippie, outro era emo
E toda a emisse a transbordar                                                                  
Conquistou o hippie em um olhar
Incesto!
Romance quase Edipiano
Construíram sua cidade
Em pouco mais de um ano
E a cidade se formou
Com um muro grande
Uma Roma bipolar
O que veio depois
Não é difícil adivinhar
A parte do lado dos emos
Acabou por se matar
Hippies no poder
Todos se puseram a dançar
E o LSD tomou conta do lugar
Togas brancas e largas
Coroas de louro na cabeça
Meditações na casa de banho
Nadavam enquanto dançando!
Até que um dia
O sol não nasceu
O escuro sufocante
Não podia ser mais broxante
E a alma deles se escureceu
Mas um emo nasceu
A escuridão iluminava sua alma
Logo, logo a Roma hippie
Passou a ser regida por novos reis
Mas a natalidade estava caindo
Pois todos os emos são gays!
A história hippie
Ficou guardada
Em um baú no meio da estrada
Três mil anos depois
Numa escavação arqueológica
Fazem a chocante descoberta
E a matéria de Roma Antiga
Enganada nas escolas
Passou a influenciar os jovens
A usar drogas
Felizes e abobalhados
Apenas imitavam a história
O único problema era
A conseqüente falta de memória
A cidade ficou lembrada
Pelos seus elefantes cor-de-rosa
Fuscas voadores
E hippies destruidores
Togas brancas retornam à moda
Coroas de folhas também
"Somos ninfos da floresta,
Vamos voar, amém!"
E tentaram voar.
Os poucos hippies restantes
Da cidade emo
Subiram num penhasco e se entregaram para o vento
Mais felizes do que nunca
Pairando pelo ar
Mergulharam fundo
E viraram espuma do mar
Roma deserta entrou para a história.


por anouk e lili

segunda-feira, 12 de maio de 2008

culpa

Não quero me sentir culpada.
O amor se desgastou por causa da culpa,
será que posso culpá-la?
O tempo todo ela me pertubou, agora a temo.
Não quero encontrá-lo, não quero que ele traga a culpa
Quero fugir
Mas não tenho do que fugir,
nem da onde fugir,
A culpa está em mim, sempre esteve.


por anouk

How much can you know about yourself if you've never been in a fight?

Eu leio de maneira metafórica. E estão certos:
Como é possível se conhecer sem se levar ao limite? Sem chorar aos prantos, gritar histericamente, quebrar tudo e despedaçar-se em momentos de intensidade? 
A sociedade nos impõe o comportamento moralmente aceitável, nos induz à dormência. E depois censuram a busca por entorpecentes! Foram eles que nos ensinaram que o entorpecimento e o vazio são bons;
Nossos corpos urgem por sangue e lágrimas; fomos feitos pra destruirmos-nos e renascermos periodicamente: a fênix é a metáfora do ciclo emocional humano. E, no entanto, emoções fortes são as marcas da insanidade da nossa era; insanidade é valorizar o neutro: o bege acima de todas as cores

por lili

A Queda


Fita cinza
pé, chão
mão--
Sangue, água
mamíferos, 
largartos
(reconstrução celular )

por lili
Quase gráfica indiferença
O rosto limpo me acalma;
odeio-o.

por lili

mais um capítulo

Se sou Alice
[és] Meu gato listrado
Me confundes
Sonho lúcido
Sorriso incerto
Me faz incerta
Brincas com meu riso
Corro o melhor perigo

por anouk

Tom Bloch




Cabeça caixa
Transbordando
Desfiltrada
Que é o lixo?

Menina baixa
Semi curvada
é tanta carga
sem desapego

Ébano em fogo
pelas orelhas 
fios cortados
pregos soltos

Um parafuso
Um ano novo
Casa lotada
mal se aguentando

por lili


sem título


Doce,
é tarde demais.
A mão que se entrelaça
Meu olhar observador,
escorrendo pelos cantos da boca.

Fluidas viagens
de palavras inúteis
e olhares expressivos,
falsos --

Solta o cabelo,
Sorri [a]
Caninos banhados em líqüido espinal
O gosto é irresistível
(de cortes que ainda me fazem sangrar)

por lili

pequenas confissões


Minha alma é um suspiro.
Páginas e páginas. Vivências.
A procura pelo amor em cada frase,
amor por quem? Pelo que?
Que amor é esse que se procura? Não se procura amor!
Só diminui o amor que sinto por mim mesma.
São as expectativas,
precipitadas demais.
Decepções, Vazio, A falta
A falta que permaneceu e até aumentou com as expectativas.
O pior que algumas permanecem.
Tolice a minha, pura tolice. Por mais que o saber se disfarça de anestesia,
parece apenas prolongar a dor.
Adiar a dor.
Mas do que me queixo?
Eu amo a vida. Amo essa incerteza que me faz criar expectativas.
Amo poder sofrer enquanto esse sentimento não me domina.
Só não amo esse vazio...
Contradições que me compõem junto das células, contradições do meu sangue, do meu espírito que me abandona e me preenche.



por anouk

a crise da minha idade


Mais um ano, praticamente nada.
Nada de muito
Muito enrolar, nada de mais
Demais para lembrar,
Logo, nada
Em nada de tempo
Muito escrevi
Em muito de tempo,
Tão poucas páginas
Muita abstração, nada concreto
Muitos passos,
Cadê as portas?
Muita gente!
Há de se viver?
Vivo.
Quase nada
Quase de graça
Mas muito
Obrigado?
De nada
Nada de muito
Que graça!


por anouk

A morte


Falta de energia
Presença longe
Transpiro a falta
Deixo de transpirar

Energia que relaxa
Acumula correndo
E paro.
Chacra da coluna
Me encontro a dançar

Insecta. Meu sangue
Deixe-me tentar
Sentir o gosto
E acordar em rostos verdes

Cãibra. Preciso de ar.

          *          *          *

Que ar é esse que me parece cada vez mais denso? Meu cabelo cheira à química e parece desbotado. Meu cérebro aceita a química, massa encefálica que entrega minhas emoções. Corrosão. A química me transforma num réptil sem reconhecimento. Queria braços flexíveis como o Senhor Fantástico, assim alcançaria tudo o que quisesse. Talvez eu não saiba o que eu queira, ou já alcancei o que procurava. Tudo fica pra trás. Minha conquista escorre pelos meus dedos. Eu quero de volta.


por anouk

Perdendo tempo que não tenho


A segunda-feira é longa e fria, meu casaco é só longo, meu nariz é só frio. Vestida como uma andarilha peruana, espinhas feiosas mas quase discretas espalhadas pelo meu rosto, contrastando com as rachaduras frias nos meus lábios finos e secos. Esmalte vermelho descascado, manchado de caneta. Unhas roídas, cortantes, horríveis. Quero uma lixa. Quero um protetor labial. Quero tempo, para ver os filmes deitados em cima da televisão, para ler uns livros, pra absorver algum conhecimento distante da realidade atual na qual sou apenas uma estatística e fico mais idiota ao minuto. Por minuto. Não penso em mais nada além dos meus dedos ossudos e tortos, sem que nunca os tenha estalado, na voz suave do professor, que eu mal percebo, na minha inquietude da qual não consigo escapar. Mas posso fugir um pouquinho, de fininho, no meio de uma aula que não está prendendo minha atenção. Não. Não muda. Um punhado de água gelada no rosto não mudou. Adiantou mas não foi adiante. Nem tinha como. Não sinto fome, mas deveria. Meus devaneios todos voltados para um programa de tv um tanto interessante que serviu como desculpa para adiar um tanto mais meu sono. Instável. Instáveis os meus hormônios, as minhas olheiras, as minhas aftas e meus arranhões. Várias cabecinhas, como a minha, me rodeando, no que será  que estão pensando... Será que eles podem ler estampado na minha cara, que desperdiço meu tempo divagando sobre um semi-resfriado e meia garrafa de água velha, minha borracha de cupido, de volta a voz suave do professor, que vai e volta, cada vez mais alterada por minha deturpada percepção. Que percepção? Que idiota.  Aposto que a Clarice Lispector nessa idade escrevia contos, romances, histórias ao invés de perder seu tempo se concentrando em botar no papel as futilidades sem utilidades, sabendo que não serve de nada, não é vanguardista nem retrô ou clássico, só idiota, idiota e clichê. Esse chocolate na minha boca tem gosto de chiclete de tutti frutti e não sei se devo buscar algum sentido nisso. Isso. Nada é nada, tudo é matéria e eu sempre ansiei por doar meu corpo à ciência para causar em estudantes aqueles pequenos orgasmos que sempre quis e sei que um dia vou sentir, ao revelar os interiores de um de nós, controlando o bisturi. Minhas entranhas causariam gozo mental e espiritual que é impossível vivenciar sem pegar nas vísceras de um alguém. A maca fria de metal contagia o ar e estou deitada nela sem querer e sem poder evitar. Será esse o motivo do frio ser agradável? Por que, então, vivemos com medo de ser cortados metaforicamente? Porque não seguram bisturis, mas sim canivetes enferrujados. Não compreendem a beleza do sangue, da morte, da luz que nunca aparece. O ceticismo dos instrumentos cirúrgicos esterelizados. O cadáver aberto como a expressão mais evidente e bela do ateísmo. Do meu, não do seu, não das cabecinhas à minha volta, cérebros de metal. Como o meu. Como o seu. Que improvável. Nada serve de prova. Nenhuma idéia nova; nossos conceitos são química, reações químicas e elétricas: eis nossa genialidade, impulsividade. Nada é controlado e as cabeças do meu lado são exatamente iguais, as origens de seus pensamentos igualmente banais. Uma espécie de calvinismo da natureza que preferimos ignorar. Não eu. Nenhum tempo é perdido, as reações são as mesmas, a mesma. Reveladas junto ao cheiro de formol.

por lili

Éter


Preciso esquecer;
Aquela sauna lotada
Um grande salão
Vazio.

Falta da mentira
verdade anestésica,
preciso de anestesia?

Meu sangue escorre,
nada sinto.
O vermelho apaga sua imagem
Ainda não vejo quem é.

Que queres?
Meu sangue se dissolve
em água que lava seus pés

Escorre despercebida
Fome de mentira
Minta.
Acreditar é minha paz.

por anouk

Gota


Um soneto
repleto 
de cianeto

Uma valsa
à beira
da piscina

Um jantar
em família
no escuro

Um beijo
de boa
noite

Um não-
soneto

Executado

por lili

aniversário


as cerejas
foram esse ano esquecidas?
meu sangue jorra

mais um dia
Mil lágrimas
uma adaga

A dor é
inexplicável
inexorável
insuportável

identidade?
que se passa
no jogo de dados

uma pilha
minha carga
aumentada

apagada.

por lili

Ex Mulher


Vampira,
encheu-me de
amor, mas
seus caninos

Deixaram marcas
meu sangue
perdoa mas não
esquece

Um bosque de
palavras,
de retratos
Um mato

Eu mato
a nostalgia
a serra elétrica
é sempre suja

Com a serragem
de uma criança
despedaçada
Um espírito

desperdiçado
Sua lembrança
se esquece. A
minha não.

por lili