quinta-feira, 19 de junho de 2008

Um caso médico

"Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?"

Quando menos esperava, vinha aquele soluço. Atravessava a garganta a um só movimento, e aí era um hic-hic que não acabava mais. Bem verdade que as crises de soluço não eram novidade alguma para Alberto, mas daí a tornar-se escravo delas era algo que não podia aceitar.
Quando pequeno eram tão raras quanto as complicações que lhe apareciam. Qual não foi sua vergonha ao beijar pela primeira vez Mariazinha; estava lá ele, em meio aos amigos e a toda a maturidade que a situação lhe exigia, quando... hic! hic, hic... Foi correr para casa e no quarto trancar-se o resto do dia, embora algo lhe dissesse que jamais poderia esquecer o que se passou.
Como encararia os amigos?
Mas caso pior foi a vez em que viu os pais brigando, coitado; em plena mesa de jantar, o lugar sagrado da casa, na hora sagrada... Num minuto perguntavam sobre o dia na escola, e ele contava suas notas e o que aprendera, mas mal havia levantado e já estavam a discutir aos berros! Que ao menos o fizessem longe dali, onde os gritos não pudessem ecoar pelas paredes e apertar o seu coraçãozinho de menino. Mas não fizeram. O pequenino não resistiu à mágoa, que lhe fugia em ininterruptos soluços, e juntos atravessaram toda a noite. Até um médico foi chamado para cuidá-lo, mas pouco pôde fazer; era inexplicável o caso dele.
Foi tentando evitar possíveis vergonhas que o jovem se privou de tudo que lhe cercava: privou-se de emoções, de amores, privou-se de lágrimas. E, pobrezinho, ficava no quarto, a luz quase sempre apagada, a assobiar e cantarolar das tristezas as mais melodiosas.
Mas se não podia esconder-se para sempre, como sobreviver? E o desejo de aventura e de vida que pulsava no peito, latente?, e a vontade de amar... Que contradição o afligia! Tão mocinho, o que não deve ter sofrido...
Eita, mundo perverso! Não fossem tão cruéis as pessoas e o garoto talvez não penasse tanto em se expor; se não o julgassem tanto, talvez... Era aceitar ou fugir. E embora soubesse que nenhuma fuga, de fato, liquidaria o problema, foi a saída menos dolorosa. Se engana quem pensa que um homem pode passar a vida a fugir. Não pode!
Mas só foi perceber isso certa noite, quando recebeu um sinal. Ou pelo menos era o que acreditava. – Mas o quê que é isso?!!– Quando já tarde, na solidão do quarto, viu subir sua perna um percevejo, tão pequenininho que dava pena o esforço que fazia. E pra que? O que ele ganharia? Saberia que lá no topo nada havia que o agradasse, a não ser, talvez, a vista? Poderia até morrer se caísse!... – Não tem medo não, amiguinho?, mas ele não respondeu... Diria o quão difícil foi enfrentar seu medo. Mas se não o enfrentasse, o que seria dele; a que lhe serviriam suas firmes patinhas, sua durinha carapaça, suas fagueiras antenas? Percebeu que a eterna fuga não mais o satisfazia. Se não para enfrentar o medo, e tudo aquilo que o limita, para que serviriam esses longos braços e essas fortes pernas? Se o angustiante ciclo das desesperanças se mostrava infinito, só cabia a ele rompê-lo. E estava decidido.
Naquele sábado de manhã, abriu a porta da frente, ainda cedinho. Com os olhos bem arregalados viu toda a luz e todo um universo de possibilidades que o esperavam. E depois, viu o medo; os malditos soluços. Mas desta vez não sentiu aquela alucinante vontade de agarrá-lo pelo pescoço e para longe arremessá-lo. Desta vez pegou em sua mão; sabia que ele estaria sempre próximo. Então, saíram os dois caminhando.

por san
Porque andas calado, meu filho,
Quem o puseste aí?
Fizestes algo terrível, menino,
Porque não estás a sorrir?
E esses versos no chão
Porque não os publicou ainda?
Que esboços de vida são esses, menino,
Diga, meu filho, não minta?

– Foi escolha minha, meu pai.
Disseram-me que não presto,
Que não sou comum o bastante,
Comum como todo o resto.

– E essa minha jaula, pai meu,
Forjei-a com o próprio medo,
E a vida ainda restante
Guardei-a com os livros na estante.

por san

"Mas acho que o grande DiMaggio se orgulharia hoje de mim"

Sonhava que nadava no universo. As estrelas pareciam luzes natalinas, em volta da fogueira aconchegante do Sol. O vácuo do éter entorpecia seu corpo e seus sentimentos enquanto flutuava livre, sem a massa da Terra mantendo-a presa ao chão. Chão. Voltou a sentir a cama lhe sustentando. Eram 7.43 de sábado - a insônia crônica fazia com que ela acordasse um bocado mais cedo do que gostaria - e o sol invadia seu quarto pelas brechas da cortina, contrastando com a brisa fria que trazia consigo. Se movendo o mínimo possível, alcançou seu laptop na mesa de cabeceira, ao lado do controle remoto - apanhou-o também. Entre espreguiçadas, ligou a televisão e desligou o celular; Não queria ouvir ninguém hoje. Infomercial, desenho, comercial, videoclipe, filme, filme, documentário, filme. Aquele acabara de começar, fato que, independente do que viria a seguir, tinha o poder de prendê-la até até o final. 
10.16. A tv era ignorada enquanto jogava o que parecia ser a milésima oitava partida de mahjongg . Fechou o computador em sinal de desistência. Rolou debaixo do edredon e observou por alguns momentos seu amplo quarto, predominantemente branco, com estantes repletas de livros, revistas e discos roubados de seu falecido pai. Caminhou arrastando os pés até as imensas janelas , que iam de poucos centímetros abaixo do teto até o chão; faziam-na se sentir pairando sobre a paisagem. Afastou as escuras cortinas com cuidado e se permitiu absorver o sol ainda matinal. 
12.32. Agarrada ao lençol na posição fetal, soluçava entre gemidos de dor; seus olhos ardiam. Lágrimas tardias caminhavam do meio do pescoço até a gola da camiseta. Ainda não havia comido nada naquele ensolarado dia de inverno. Sentia sangue imaginário sendo estancado por uma faca imaginária alojada em sua barriga ferindo o estômago, onde a morte é lenta.  Balbuciava seus pensamentos e voltava aos prantos. O intervalo entre as crises era de uns poucos minutos - até acabarem, pouco mais de uma hora.
13.58. Bebericava água velha de um copo que estava em cima da cabeceira da cama desde a noite anterior. Seu rosto não tinha expressão alguma - se não fosse pelo movimento manual que fazia ao mudar de canal, seria fácil deduzir que estava catatônica.
14.24. Apoiada na janela, acendia com dificuldade seu Parliament com um zippo prateado e mais estreito que o normal, que herdara de um velho namorado. Inspirava a fumaça profundamente, deixando-a invadir seu pulmão em seu estado mais dilatado; Sentia a pressão baixando aos poucos e o frio se tornando mais agradável. A fumaça era sua amiga - fazia com que ela se sentisse acompanhada e consolada. Observava o mundo em sua paisagem emoldurada por anéis de fumaça nicotinada, que garantiria um ar noir à sua visão caso já fosse noite. Sentia seu corpo leve e vazio; o cigarro escorregou por entre seus dedos e encontrou repouso no centro do cinzeiro. Sentada no chão, encostada no vidro protetor da parte inferior da janela, perdeu o ar e chorou.
16.37. Adormecida no chão, envolvida pelo edredon (que fora arrancado da cama com desleixo), as pontas do dedo quase tocando o pôr-do-sol gélido. Sonhava que voava dentro da piscina de Gellért.

por lili

"É doce morrer no mar"

por anouk

Quero aprender a amar como Vinícius. Não importa se 9 amantes ou um só a vida inteira. Quero aprender a eternidade de momentos singelos, amar um gesto. Uma unha que for. Quero banhar o mundo com esse amor, e assim fazer sorrir almas congeladas. Porque é isso que importa, e é para isso que estamos aqui.

Ela falava com o ar, a mercê de uma janela –no fim sempre nos resta a moldura de janelas- Se ao menos houvesse alguém para amar... Era noite de lua: Postes acessos em vão nas calçadas já iluminadas, convidando-a para uma volta. Tinha compromissos cedo no dia seguinte, não podia se dar esse luxo. O amor bombeava seus pensamentos, prestes a explodir pelo nada. Era preciso compartilhar tal sentimento misterioso porque sabia que aquela noite era para isso. Sim, a noite era para isso; Esperar seu Guma em cais baiano, seu Romeu em sacada branca.
Chega de sonhar. Foi arrumar as coisas para a manhã que se sucederia -cada vez mais perto -Agenda, carteira, onde estavam as chaves? Procurou na bagunça da estante, ao lado da televisão. Lá estavam elas, jogadas em cima do Box da Audrey Hepburn. Apenas um filme em seu lugar, os outros dois perdidos pelo flat. Segurou aquela caixinha de papelão, presente de alguém já longe. Sentou na cama. “A princesa e o plebeu”. Um romance em Roma. Esticou o pescoço como se espiasse a janela: Aquele Botafogo sufocante.
Valeria a pena assistir aquele filme de novo? Estava cansada do papel de telespectadora. Deitou-se. Amanhã estaria mais uma vez naquele escritório de paredes finas. Contabilidades inúteis. As mesmas pessoas esnobes de hoje, carregadas das mesmas piadinhas sem graça. Olhando o teto reparou a poeira acumulada nas abas do ventilador. Ventilador de duas abas, idéia simples, estaria aquele design rico? Passos barulhentos do andar de cima. O bebê nunca visto chorando mais uma vez. Porque ele estava sempre chorando? Ela passou a imaginar seu rosto. Bochechas rosadas, aquele cheirinho gostoso. Sua vontade era subir as escadas e pegá-lo para si. E assim amá-lo acima de tudo. Amar tanto, e de amor transbordar.

Deixa de besteira.

Abriu as portas do armário por algum impulso desconhecido. Pegou aquele vestido, há muito não usado. Vermelho de bolinhas brancas: Alguém a amara dentro do tecido rodado. Vestiu-o, pintou o rosto e calçou seus mais belos saltos.
O mar longe se medido em passos, a sacada; Uma janela pequena e alta de mais. Resolveu então sair de casa: A busca por uma taça de vinho francês, e quem sabe por uma Tiffany, para brilhar diante da vitrine.
Por que ela sabia que essa noite era para isso.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Antes do dia 30.

Eu já estava exausta. Não parava em casa fazia três meses ou mais. Minha memória começava a falhar, porém não havia necessidade dele repetir a frase pela sétima vez. Sete vezes. A única lembrança que restou dessa época. Um número não dito, um número contado de uma frase repetida. Uma frase em vão.
A chuva molhava-me até os ossos; não minha alma - esta já estava ausente. O som da voz dele era ouvido mas não registrado. Já era noite, a cidade parecia ainda mais suja. Andávamos por becos, engolidos por prédios imensos. Nosso objetivo era se afastar, mas eu já estava exausta: Queria chegar. Uma recepção, qualquer que fosse. O ar empoeirado machucava meus olhos. Sentia as lágrimas escorrendo vermelhas, assim como sentia os arranha-céus arrancando minha pele. Com o canto do olho, sabia que ele sequer olhava para mim. O que ele queria? Para onde me levava? Quando saí de casa pensava conhecê-lo e ali, de pernas cansadas, reconheci um desconhecido. Precisávamos de um lugar para comer e dormir.
Paramos no primeiro pé sujo que apareceu no nosso caminho desorientado. Fui servida de uma cachaça para fortalecer a alma. Enquanto virava a dose, pelo fundo do copo observava seu olhar de reprovação. Idiota. Aquele terno engomado já estava imundo, não havia necessidade de tanta pompa. O garçom voltou mais duas vezes antes de finalmente pedirmos algo para comer.
Os velhos sebosos depositavam suas esperanças em fliperamas com sons ensurdecedores. Gira, gira, ding ding ding, moeda, click. Luzes coloridas tornavam-se escuras ao entrar em meus olhos. Tentava ignorar. Filé com fritas, muito ketchup. Ele me olhou com um ar de repressão. Consegui ignorar. Comi com vontade. Ele mordiscava seu bife misturado ao feijão com repulsa. Bem feito. Agora teria que se acostumar com esse estilo de vida; o mesmo que eu tive que aprender a aguentar há não muito tempo. Mais uma cachaça. Fazia sentido se afastar? Ele mandou maneirar no dinheiro. Eu disse que nada disso estaria acontecendo se não fosse por ele. Não me preocupava pois sabia que ele tinha dinheiro no banco. O garçom tinha gostado de mim, se ele não quisesse pagar eu dava um jeito. Mas sabia que não seria necessário; ele não me deixaria fazer isso nem por ele, nem por mim. Seus olhos tristes buscavam conforto discretamente, mas os meus estavam apenas cansados e sem vida. Eu não tinha nada a perder fazia anos; Ele não. Havia construído uma vida para poder respirar melhor - a mesma vida que esmagava-o enquanto ele se cortava emocionalmente, diante de mim numa mesa de plástico amarelo. Eu não podia sentir pena. Fora ele, ele que nos trouxera até ali. Isso não podia fugir da minha memória. Tudo menos isso. Minha memória de fragmentos. Será que alguém me procurava? Quem me procuraria? E à ele? Toda aquela vida em vão, objetivos destruídos. E por quê? Pelo o que?
Saímos dali, eu bêbada, ele miserável. O som das moedas no copo do mendigo cego da esquina me era familiar mas não sabia o porquê. Minhas mãos ardiam - como não havia percebido antes? Uma porção de pequenos cortes e marcas vermelhas. Hematomas no pulso esquerdo. O que significava tudo isso? Podia sentir as lembranças indo embora antes de se concretizarem, assim como sentia que o nascer do sol não chegaria tão logo quanto eu queria. Precisávamos de um lugar para dormir.
A rodoviária não era longe. Dormiríamos no ônibus. Não podíamos parar de seguir. Malas para todos os lados, aquele relógio redondo me observando. Passamos por um espelho: só a roupa do couro. Que ônibus sairia mais cedo sem nos custar muito?
Seguimos para Minas Gerais.
As poltronas esburacadas e sujas irradiavam luz e conforto para meus olhos. Semi-deitados, dois zumbis. Mesmo exausta, demorei a cair no sono. A paisagem noturna corria rapidamente enquanto eu mirava o mundo pela janela (que, em um ato de cavalheirismo, ele cedeu para mim.) Olhei para ele. Já dormia. Queria registrar aquela imagem para sempre. Beijei seu rosto, ele sorriu inconsciente. Queria a eternidade naquela estrada, que ela não acabasse. Ignorei a proximidade de Minas, encostei minha cabeça em seu ombro e vivi, porque era o que me restava fazer para jamais perder aquela imagem. Adormeci. Acordei com ele me chamando - o ônibus havia parado. Pela janela, via o sol se derramando pela paisagem não familiar. Saltamos e voltamos a andar para o Norte, a referência mais precisa que tínhamos naquele lugar. Munidos com uma garrafa d'água e um par de óculos escuros para cada, já estava conformada com o vazio. Percebi, no entanto, que estava sozinha nesse sentimento, quando pude observá-lo ajustando a gravata em vão - não para ele. Aqueles pequenos vícios, como manter o cabelo penteado e nunca desabotoar a camisa faziam-no esquecer um pouco a situação que havia se instalado em sua vida. Chegamos ao centro da cidade, procurando algo para comer e um modo de repor a água do cantil.
Entramos em uma loja com atmosfera caseira. Com minha melhor voz de menininha, pedi à velha atrás do balcão por um banheiro e um pouco de água. Ela nos ofereceu um banho. A ducha morna deu um ânimo em nossos espíritos - éramos agora um par apresentável, ligeiramente mais dignos. Agradecemos a senhora mais genuinamente do que jamais havia agradecido alguém. Saímos com os cabelos molhados e a garrafa cheia.
Parados na calcada do centro de cidade desconhecida bebendo água para seguir ao Norte. Norte por falta de opção? Eu queria o Norte: subir, crescer. Chega de regressão. Finalmente eu sorria voluntariamente. O abracei, ele não parecia tão feliz.

- E agora? O caminho não é longo mas os desvios são muitos. Está me ouvindo? - disse ele, se afastando do abraço.
- O caminho da minha ambição é sempre longo.
- Parece que estamos encurralados nesse encruzilhada há dias, há alguns anos. E você só anda pra onde a minha mão aponta.
- Pra onde você quer que eu ande? Você que tomou essa decisão de fugir!
- Precisamente. Ando tomando todas as decisões, por mim e por ti. Não podes se prender assim pra sempre. Aprende a se cuidar sem mim.
- Ótimo! Você acha que eu não posso me cuidar sozinha! Vai embora, volta pra sua vidinha medíocre de paletó. - fui me acalmando gradativamente - Não é isso que você quer? A essência da nossa fuga se diluiu. Já não sei mais do que fugimos. Eu só quero chegar e meu caminho é ao norte. Volta, você tem uma vida que te espera.

Pela sua hesitação, sabia que as palavras que se seguiriam seriam pronunciadas cuidadosamente.

- Você sabe pra onde seguir? - mais uma pausa. - Vai precisar de recursos.
- Você sabe que eu me viro.

Ele me abraçou forte. Seus olhos se encheram de lágrimas mas sua dureza não permitia que as deixasse rolar.
- A gente se fala.

Ele deixou seu paletó e algum dinheiro. Deu meia-volta, eu segui na direção oposta. Chorei, mas sabia o que fazer.
Havia chegado no meu destino. Estava ao Norte; no início de uma ladeira. Subi ansiosa e me deparei com um imenso pasto de grama verde. Me deitei e esperei a noite, apenas pela visão familiar; Uma recepção gelada porém eterna, escura e iluminada.

por anouk e lili

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Minha vida é uma Harpa sem cordas

O maestro me deixou
morta, ao lado
da cortina.

Não mais me conduz;
continuo ali,
aqui
desfalecida

Meu pé se arrasta,
Ouço o silêncio
dos seus dedos
sempre titubeantes

Pela janela
da salinha
os arbustos secos;
ainda havia orvalho na grama

As notas soltas
me dissipavam
com sua indiferença,
ali no chão

Com toques de letargia
me assassinei
envenenada
Onde estás?

No fim do palco
fui esquecida
ainda viva

por lili

terça-feira, 10 de junho de 2008

Lá fora é uma selva

- Lá fora é uma selva, meu filho! você nem imagina os perigos que te esperam, respondeu a mãe num tom ameaçador, como se o terror psicológico ainda o atingisse. Mas Paulo já estava acostumado; nem se assustava mais. Porém rebelava-se (Calava mas não consentia). “Aquela ditadora! Acha que tem sempre razão”.
- Mas mãe, eu já tenho 12 anos, já sei me cuidar. Além disso, o papai sempre deixa.
- Então você pede pra ele quando ele voltar de viagem...
- Isso não é justo mãe, além do que hoje é sábado – disse ele num último suspiro, tentando em vão impedir que ela desviasse a atenção. É Paulinho, é um mundo injusto mesmo...
Mas que fazer? Todos os amigos o esperavam para a partida de futebol. Com olhos transbordando melancolia, o menino subiu a escada que levava a seu quarto, deixando para trás uma cachoeira de lágrimas. Passada a tristeza inicial, o menino decidiu-se: não deixaria uma “infantilidade boba” de sua mãe atrapalhar o jogo. Cobriu uns travesseiros que tinha com um cobertor velho e, cuidadosamente, saiu pelo parapeito da janela, descendo até o andar de baixo pela calha lateral. Na esperança de que sua mãe não descobrisse a fuga, seguiu caminhando bem vagaroso. “Não foi tão difícil assim”. Enquanto caminhava, o medo de ser descoberto deu lugar ao orgulho. Deu-se conta do que havia feito, e não se arrependia. Afinal, julgava-o certo. Por fim, sentiu-se pleno, dono de si. E os amigos, então, que diriam?
Levando em conta os devidos exageros juvenis, não é que o garoto manteve-se bastante fiel à história. Um heroísmozinho aqui, um martiriozinho ali, e lá estava ele, entre os súditos, poderoso. Usou e abusou do dom que tem os rapazes de transformar em epopéia qualquer simples fato. – que selva que nada, mãe – pensou. No fundo, queria convencê-la. Por isso estava lá. Não importava se jogaria futebol ou brincaria de bonecas. Queria libertar-se; chegar em casa e jogar na cara – viu mãe, voltei, inteiro!
Passada a glória, foram ao jogo. Contagiado pela emoção que o havia tomado, o garoto estava impossível; pegava a bola na defesa, queria atravessar o campo sozinho, driblar todo o time e ainda marcar o gol. Esses meninos... Assim terminaria a partida não fosse o pequeno Joaquim atirar a bola com assombrosa violência matagal adentro. Como mandava a etiqueta dos rapazes, “quem isolou vai buscar”. E lá se foi Joaquim.
Assustados com a demora do amigo, preocuparam-se. Entraram todos na mata para procurá-lo.
- Pessoal, vem ver o que eu encontrei!
Era ele; Preocuparam-se ao ver o amigo curvado, no chão, como se algo o tivesse atingido a barriga.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele não respondeu. Estava debruçado sobre um passarinho, miudinho que só ele, cutucando-o com sua impiedosa vareta. A chegada dos amigos só piorou a situação do pobrezinho, que agora era importunado por vários ao mesmo tempo. Na verdade, Paulo até comoveu-se com os gemidos que dava o bichano, mas não ousou falar nada. Não podia deixar que duvidassem de sua virilidade, sua macheza. Pareciam se divertir tanto vendo sofrer o animalzinho. Ou não teria nada daquilo a ver com o coitado, e sim com cada um dos rapazes, impelidos a lutar num cruel ritual de auto-afirmação? Paulo, como saber...
Ao anoitecer, todos partiram; só a culpa restara. E Paulo. Precisava redimir-se; calara e consentira quando o pequenino mais precisara. Esperou mais um pouco, até que os amigos não mais o pudessem ver. Ajoelhou-se no chão, e arrependido, sussurrou:
- Onde está sua mãe, passarinho?, você não devia ficar por aí, sozinho – aqui fora é uma selva!
Pegou-o suavemente e o devolveu ao ninho.

por san

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A moça da lanchonete

O despertador tocou. Ela estava cansada de levantar da cama apenas pela inercia do cotidiano; Mais um corpo em vivência. Sentiu o gelado do chão de pedra em seus pés, três passos à frente, e cinco à direita. Continuava nua pelo costume de dormir assim, agora já na cozinha. Tomou seu café lendo jornal, se vestiu e saiu com pressa. Pernas aceleradas, pressas em short curto, quase nulo, desconfortável, mas era uma exigência do patrão. Apenas em dias de inspeção sanitária usava avental e toca, afinal seu corpo amostra era o marketing da lanchonete. Andava os quatro quarteirões para chegar no trabalho. Passava pela mesma obra, parada a meses. Via os mesmos rostos parados no ponto de onibús, observando-a passar. Mesmos rostos, todo dia, nenhuma palavra, nem mesmo sorrisos de ambos os lados. Estava cansada desses rostos. Estava cansada da obra parada. Nenhuma mudança, como se os dias passasem independente do tempo. Chegou na lanchonete. Recebeu um tapinha do patrao na bunda como saudação de bom dia. Sorriu falso. Fazia mais isso que fritar hamburgueres naquela lanchonete suja. Os músculos de seu rosto estavam exaustos desse exercício. Sempre os mesmos fregueses, primeiro, sempre pontual, aquele senhor de barba grisalha, sorriso torto e voz falha:
- O café de sempre princesa!
Princesa. Para esse senhor de dentes sujos ela sempre fora princesa. Princesa de que reino? Princesa das moscas. Princesa da lanchonete gordurosa. Princesa do café de sempre. Café cheio de açucar para o homem diabético. Como ela queria que ele realmente fosse diabético, para assim um dia não aparecer mais ali. Virou-se para a cafeteira, sabia que o homem aproveitava para analisar suas pernas nuas. Voltou ao balcão, agora eram dois.
- Me vê aquela coxinha gata!
Os homens multiplicavam-se ou substituiam-se de acordo com os ponteiros do relógio velho na parede empoeirada. Serviu a coxinha, recebeu umas moedas de gorgeta e uma piscadela. Sorriu falso. Olhou o relógio: 11:30. Sabia que em cinco minutos chegaria aquele jovem sempre usando boné e correndo, atrasado. Já separou o refresco e a esfirra de sempre. Sempre. Tudo sempre de sempre. Então o menino surge da esquina na hora esperada. Seu lanche no balcão em uma fração de segundo. Agradeceu a eficiência com aquele jeitinho assanhado:
- Esse refresco só não é mais doce que você, valeu gostosinha, té amanhã!
Ela sorri falso, e o menino vai sumindo, da mesma maneira que surgira. Já era quase meio dia, hora de seu almoço. Odiava comer cedo assim, mas não podia perder a hora de almoço dos clientes. Pegou um salgado e um refresco e sentou numa mesa. Não tinha vontade de sair da lanchonete, a rua era tão suja quanto ali, estaria tão sozinha quanto ali. O patrão saiu para comprar cigarros, era um alívio. Mastigava devagar. Olhos fixos, como se não pensasse em nada. Voltou para o balcão, agora sua tarefa se resumia à fritar hamburgueres e batatas. Gordura para todos os lados. Seu rosto ficava oleoso e o calor insuportável. Os clientes passavam a chegar em bandos, sentar em mesas. Balconista, garçonete e cozinheira. O patrão dizia que contratar mais um funcionário seria o salãrio dela pela metade, então ela corria. Agora os apelidos tornavam-se insultos.
- Corre vagabunda! Não tenho o dia inteiro!
A louça ia se acumulando na pia de acordo com o entra e sai da clientela. Lembrar do ketchup, do guardanapo. Este café com adoçante,o suco com açucar, juntar mesas, esquentar salgado.
- Garçonete burra, eu pedi um pastel de queijo!
E a burra troca o pastel de carne pelo de queijo. Mais ketchup. Gorjeta medíocre.
- Se esforça mais amanha lindinha! - Aquele sorriso irônico.
Ela olhou para a gorjeta em sua mão, olhou para baixo. Sorriso falso.
Gostosa, Gatinha, Vagabunda, Burra e Lindinha. Seu dia se resumia a criatividade dos homens. Era única a figura femina, o dia inteiro naquela lanchonete, e dona de milhares de apelidos. Já não lembrava o nome de certidão pela falta do uso. Se recusava a olhar algum documento só pela falta de memória. Mas o esforço mental fora incapaz de resultados. Tentava lembrar de sua mãe lhe chamando, mas a figura dela já se apagava. Conformou-se com os apelidos; Um corpo sozinho não carece de nome.
Eram oito e quinze quando o último freguês foi embora. O patrão fechava o caixa enquanto ela acabava de lavar a louça. O cheiro de gordura se concentrou, era a respiração do chefe nos seus ouvidos. Os lãbios finos tocaram seu pescoço. Ela não queria isso, não de novo, mas precisava desse emprego; Continuou lavando a louça. Não mais um sorriso falso, sorriu de desespero. Aquelas mãos calejadas de passar o dia inteiro no caixa desenhavam suas costelas com força, juntando-se no esterno. Doía, ela fingia que gostava. Os dedos chegavam à seu busto privilegiado e apalpava-o por baixo da blusa. A levava para cima do balcão, beijava-a com brutalidade. Era sua presa. Delicadeza desprezível naquela alma pervertida. Despiu-a e abriu suas pernas com um sorriso de conquista.
- Feche tudo e não atrase amanhã. - O patrão falou fechando o ziper da calça e se dirigindo à saída.
Ela ficou um tempo deitada no balcão sem se mexer. Seu short no chão gorduroso. Ouviu barulho de chuva, ótimo, chegaria em casa enxarcada. Fechou o lugar sem pressa e caminhou lentamente para a chuva. Continuou no mesmo rítimo; Não fazia sentido chegar em casa rápido para um banho se a água da chuva era mais forte que a do chuveiro. Lambia o salgado de seus lábios. Não destinguia chuva de lágrimas, já nem sabia se chorava. Andou as quatro quadras, passou o ponto de ónibus, a obra parada. Passou da entrada de sua casa. Andou até não reconhecer mais a paisagem. Sentou a beira da estrada, deitou e se perdeu em pensamentos.
Morrer sozinha na chuva não é a pior hipótese, é ter o céu inteiro para chorar a minha morte.
Riu. Lembrara seu nome. Se dirigiu de volta à sua casa. Dormiria como há muito não dormia; Com vontade de acordar.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

O jantar de ontem

A tosse do meu pai é alta demais. Ele tosse desde que voltou de viagem.
Ontem o jantar começou como sempre: Eu tagarelando empolgada com os olhos brilhando pela comida saborosa, minha irmã declamando a saúde em seu prato, meu irmão morrendo de sono, Thiago sorrindo pela falta de verde na salada.
A televisão ligada. Dessa vez poupando-nos assunto. Meu pai vidrado em outros momentos que não o seu. Momentos interpretando o nosso. Ele provou o bife, mastigou.
Mastigou.
Sua expressão não foi das melhores.

- Não gostei desse bife não...

- Então não come, e para de fazer essa cara! - Minha mãe respondeu sem pausa.

O jantar continuou no silêncio. Era domingo chuvoso. Ela continuava de tênis de corrida impedida de correr pelo tempo. Tirara o dia anterior para as compras. Comprou o bife pensando no meu pai, ela mesma não faz questão de carne,
só faz questão de correr.
Porém, não correu com a comida. Todo o cuidado. Única atividade do dia:
Jantar com todos os membros da família; Pai, mãe, filhos e agregado.
Momento divino:
Silêncio.
Silêncio não por respeito.
Silêncio denso que preocupa e torna os movimentos automáticos e pesados. Aumenta a pressão do ar nos rostos; Rugas de preocupação.
Preocupação com o que?
O nada do silêncio.
A falta de assunto preocupa.
Não meu pai, mas sua tosse, alta demais.


por anouk