quinta-feira, 19 de junho de 2008

Um caso médico

"Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores?"

Quando menos esperava, vinha aquele soluço. Atravessava a garganta a um só movimento, e aí era um hic-hic que não acabava mais. Bem verdade que as crises de soluço não eram novidade alguma para Alberto, mas daí a tornar-se escravo delas era algo que não podia aceitar.
Quando pequeno eram tão raras quanto as complicações que lhe apareciam. Qual não foi sua vergonha ao beijar pela primeira vez Mariazinha; estava lá ele, em meio aos amigos e a toda a maturidade que a situação lhe exigia, quando... hic! hic, hic... Foi correr para casa e no quarto trancar-se o resto do dia, embora algo lhe dissesse que jamais poderia esquecer o que se passou.
Como encararia os amigos?
Mas caso pior foi a vez em que viu os pais brigando, coitado; em plena mesa de jantar, o lugar sagrado da casa, na hora sagrada... Num minuto perguntavam sobre o dia na escola, e ele contava suas notas e o que aprendera, mas mal havia levantado e já estavam a discutir aos berros! Que ao menos o fizessem longe dali, onde os gritos não pudessem ecoar pelas paredes e apertar o seu coraçãozinho de menino. Mas não fizeram. O pequenino não resistiu à mágoa, que lhe fugia em ininterruptos soluços, e juntos atravessaram toda a noite. Até um médico foi chamado para cuidá-lo, mas pouco pôde fazer; era inexplicável o caso dele.
Foi tentando evitar possíveis vergonhas que o jovem se privou de tudo que lhe cercava: privou-se de emoções, de amores, privou-se de lágrimas. E, pobrezinho, ficava no quarto, a luz quase sempre apagada, a assobiar e cantarolar das tristezas as mais melodiosas.
Mas se não podia esconder-se para sempre, como sobreviver? E o desejo de aventura e de vida que pulsava no peito, latente?, e a vontade de amar... Que contradição o afligia! Tão mocinho, o que não deve ter sofrido...
Eita, mundo perverso! Não fossem tão cruéis as pessoas e o garoto talvez não penasse tanto em se expor; se não o julgassem tanto, talvez... Era aceitar ou fugir. E embora soubesse que nenhuma fuga, de fato, liquidaria o problema, foi a saída menos dolorosa. Se engana quem pensa que um homem pode passar a vida a fugir. Não pode!
Mas só foi perceber isso certa noite, quando recebeu um sinal. Ou pelo menos era o que acreditava. – Mas o quê que é isso?!!– Quando já tarde, na solidão do quarto, viu subir sua perna um percevejo, tão pequenininho que dava pena o esforço que fazia. E pra que? O que ele ganharia? Saberia que lá no topo nada havia que o agradasse, a não ser, talvez, a vista? Poderia até morrer se caísse!... – Não tem medo não, amiguinho?, mas ele não respondeu... Diria o quão difícil foi enfrentar seu medo. Mas se não o enfrentasse, o que seria dele; a que lhe serviriam suas firmes patinhas, sua durinha carapaça, suas fagueiras antenas? Percebeu que a eterna fuga não mais o satisfazia. Se não para enfrentar o medo, e tudo aquilo que o limita, para que serviriam esses longos braços e essas fortes pernas? Se o angustiante ciclo das desesperanças se mostrava infinito, só cabia a ele rompê-lo. E estava decidido.
Naquele sábado de manhã, abriu a porta da frente, ainda cedinho. Com os olhos bem arregalados viu toda a luz e todo um universo de possibilidades que o esperavam. E depois, viu o medo; os malditos soluços. Mas desta vez não sentiu aquela alucinante vontade de agarrá-lo pelo pescoço e para longe arremessá-lo. Desta vez pegou em sua mão; sabia que ele estaria sempre próximo. Então, saíram os dois caminhando.

por san

Um comentário:

... disse...

belo belo,
imaginei com ilustraçoes muito bem feitas, que nem os livros que a manu gosta! eu faria desse conto um livro infantil, bom como os de antigamente!

(anouk)