quinta-feira, 5 de junho de 2008

A moça da lanchonete

O despertador tocou. Ela estava cansada de levantar da cama apenas pela inercia do cotidiano; Mais um corpo em vivência. Sentiu o gelado do chão de pedra em seus pés, três passos à frente, e cinco à direita. Continuava nua pelo costume de dormir assim, agora já na cozinha. Tomou seu café lendo jornal, se vestiu e saiu com pressa. Pernas aceleradas, pressas em short curto, quase nulo, desconfortável, mas era uma exigência do patrão. Apenas em dias de inspeção sanitária usava avental e toca, afinal seu corpo amostra era o marketing da lanchonete. Andava os quatro quarteirões para chegar no trabalho. Passava pela mesma obra, parada a meses. Via os mesmos rostos parados no ponto de onibús, observando-a passar. Mesmos rostos, todo dia, nenhuma palavra, nem mesmo sorrisos de ambos os lados. Estava cansada desses rostos. Estava cansada da obra parada. Nenhuma mudança, como se os dias passasem independente do tempo. Chegou na lanchonete. Recebeu um tapinha do patrao na bunda como saudação de bom dia. Sorriu falso. Fazia mais isso que fritar hamburgueres naquela lanchonete suja. Os músculos de seu rosto estavam exaustos desse exercício. Sempre os mesmos fregueses, primeiro, sempre pontual, aquele senhor de barba grisalha, sorriso torto e voz falha:
- O café de sempre princesa!
Princesa. Para esse senhor de dentes sujos ela sempre fora princesa. Princesa de que reino? Princesa das moscas. Princesa da lanchonete gordurosa. Princesa do café de sempre. Café cheio de açucar para o homem diabético. Como ela queria que ele realmente fosse diabético, para assim um dia não aparecer mais ali. Virou-se para a cafeteira, sabia que o homem aproveitava para analisar suas pernas nuas. Voltou ao balcão, agora eram dois.
- Me vê aquela coxinha gata!
Os homens multiplicavam-se ou substituiam-se de acordo com os ponteiros do relógio velho na parede empoeirada. Serviu a coxinha, recebeu umas moedas de gorgeta e uma piscadela. Sorriu falso. Olhou o relógio: 11:30. Sabia que em cinco minutos chegaria aquele jovem sempre usando boné e correndo, atrasado. Já separou o refresco e a esfirra de sempre. Sempre. Tudo sempre de sempre. Então o menino surge da esquina na hora esperada. Seu lanche no balcão em uma fração de segundo. Agradeceu a eficiência com aquele jeitinho assanhado:
- Esse refresco só não é mais doce que você, valeu gostosinha, té amanhã!
Ela sorri falso, e o menino vai sumindo, da mesma maneira que surgira. Já era quase meio dia, hora de seu almoço. Odiava comer cedo assim, mas não podia perder a hora de almoço dos clientes. Pegou um salgado e um refresco e sentou numa mesa. Não tinha vontade de sair da lanchonete, a rua era tão suja quanto ali, estaria tão sozinha quanto ali. O patrão saiu para comprar cigarros, era um alívio. Mastigava devagar. Olhos fixos, como se não pensasse em nada. Voltou para o balcão, agora sua tarefa se resumia à fritar hamburgueres e batatas. Gordura para todos os lados. Seu rosto ficava oleoso e o calor insuportável. Os clientes passavam a chegar em bandos, sentar em mesas. Balconista, garçonete e cozinheira. O patrão dizia que contratar mais um funcionário seria o salãrio dela pela metade, então ela corria. Agora os apelidos tornavam-se insultos.
- Corre vagabunda! Não tenho o dia inteiro!
A louça ia se acumulando na pia de acordo com o entra e sai da clientela. Lembrar do ketchup, do guardanapo. Este café com adoçante,o suco com açucar, juntar mesas, esquentar salgado.
- Garçonete burra, eu pedi um pastel de queijo!
E a burra troca o pastel de carne pelo de queijo. Mais ketchup. Gorjeta medíocre.
- Se esforça mais amanha lindinha! - Aquele sorriso irônico.
Ela olhou para a gorjeta em sua mão, olhou para baixo. Sorriso falso.
Gostosa, Gatinha, Vagabunda, Burra e Lindinha. Seu dia se resumia a criatividade dos homens. Era única a figura femina, o dia inteiro naquela lanchonete, e dona de milhares de apelidos. Já não lembrava o nome de certidão pela falta do uso. Se recusava a olhar algum documento só pela falta de memória. Mas o esforço mental fora incapaz de resultados. Tentava lembrar de sua mãe lhe chamando, mas a figura dela já se apagava. Conformou-se com os apelidos; Um corpo sozinho não carece de nome.
Eram oito e quinze quando o último freguês foi embora. O patrão fechava o caixa enquanto ela acabava de lavar a louça. O cheiro de gordura se concentrou, era a respiração do chefe nos seus ouvidos. Os lãbios finos tocaram seu pescoço. Ela não queria isso, não de novo, mas precisava desse emprego; Continuou lavando a louça. Não mais um sorriso falso, sorriu de desespero. Aquelas mãos calejadas de passar o dia inteiro no caixa desenhavam suas costelas com força, juntando-se no esterno. Doía, ela fingia que gostava. Os dedos chegavam à seu busto privilegiado e apalpava-o por baixo da blusa. A levava para cima do balcão, beijava-a com brutalidade. Era sua presa. Delicadeza desprezível naquela alma pervertida. Despiu-a e abriu suas pernas com um sorriso de conquista.
- Feche tudo e não atrase amanhã. - O patrão falou fechando o ziper da calça e se dirigindo à saída.
Ela ficou um tempo deitada no balcão sem se mexer. Seu short no chão gorduroso. Ouviu barulho de chuva, ótimo, chegaria em casa enxarcada. Fechou o lugar sem pressa e caminhou lentamente para a chuva. Continuou no mesmo rítimo; Não fazia sentido chegar em casa rápido para um banho se a água da chuva era mais forte que a do chuveiro. Lambia o salgado de seus lábios. Não destinguia chuva de lágrimas, já nem sabia se chorava. Andou as quatro quadras, passou o ponto de ónibus, a obra parada. Passou da entrada de sua casa. Andou até não reconhecer mais a paisagem. Sentou a beira da estrada, deitou e se perdeu em pensamentos.
Morrer sozinha na chuva não é a pior hipótese, é ter o céu inteiro para chorar a minha morte.
Riu. Lembrara seu nome. Se dirigiu de volta à sua casa. Dormiria como há muito não dormia; Com vontade de acordar.

4 comentários:

Cavalo Bundas Patas disse...

cookie, não tenho capacidade de fazer um comentário à altura.
abstenho-me

kyra disse...

orgulho de irmã!

G.A.D.R. disse...

lindíssimo! obra prima numero 1!

:*

Fred disse...

Altíssima qualidade.
Parabéns.