quarta-feira, 18 de junho de 2008

Antes do dia 30.

Eu já estava exausta. Não parava em casa fazia três meses ou mais. Minha memória começava a falhar, porém não havia necessidade dele repetir a frase pela sétima vez. Sete vezes. A única lembrança que restou dessa época. Um número não dito, um número contado de uma frase repetida. Uma frase em vão.
A chuva molhava-me até os ossos; não minha alma - esta já estava ausente. O som da voz dele era ouvido mas não registrado. Já era noite, a cidade parecia ainda mais suja. Andávamos por becos, engolidos por prédios imensos. Nosso objetivo era se afastar, mas eu já estava exausta: Queria chegar. Uma recepção, qualquer que fosse. O ar empoeirado machucava meus olhos. Sentia as lágrimas escorrendo vermelhas, assim como sentia os arranha-céus arrancando minha pele. Com o canto do olho, sabia que ele sequer olhava para mim. O que ele queria? Para onde me levava? Quando saí de casa pensava conhecê-lo e ali, de pernas cansadas, reconheci um desconhecido. Precisávamos de um lugar para comer e dormir.
Paramos no primeiro pé sujo que apareceu no nosso caminho desorientado. Fui servida de uma cachaça para fortalecer a alma. Enquanto virava a dose, pelo fundo do copo observava seu olhar de reprovação. Idiota. Aquele terno engomado já estava imundo, não havia necessidade de tanta pompa. O garçom voltou mais duas vezes antes de finalmente pedirmos algo para comer.
Os velhos sebosos depositavam suas esperanças em fliperamas com sons ensurdecedores. Gira, gira, ding ding ding, moeda, click. Luzes coloridas tornavam-se escuras ao entrar em meus olhos. Tentava ignorar. Filé com fritas, muito ketchup. Ele me olhou com um ar de repressão. Consegui ignorar. Comi com vontade. Ele mordiscava seu bife misturado ao feijão com repulsa. Bem feito. Agora teria que se acostumar com esse estilo de vida; o mesmo que eu tive que aprender a aguentar há não muito tempo. Mais uma cachaça. Fazia sentido se afastar? Ele mandou maneirar no dinheiro. Eu disse que nada disso estaria acontecendo se não fosse por ele. Não me preocupava pois sabia que ele tinha dinheiro no banco. O garçom tinha gostado de mim, se ele não quisesse pagar eu dava um jeito. Mas sabia que não seria necessário; ele não me deixaria fazer isso nem por ele, nem por mim. Seus olhos tristes buscavam conforto discretamente, mas os meus estavam apenas cansados e sem vida. Eu não tinha nada a perder fazia anos; Ele não. Havia construído uma vida para poder respirar melhor - a mesma vida que esmagava-o enquanto ele se cortava emocionalmente, diante de mim numa mesa de plástico amarelo. Eu não podia sentir pena. Fora ele, ele que nos trouxera até ali. Isso não podia fugir da minha memória. Tudo menos isso. Minha memória de fragmentos. Será que alguém me procurava? Quem me procuraria? E à ele? Toda aquela vida em vão, objetivos destruídos. E por quê? Pelo o que?
Saímos dali, eu bêbada, ele miserável. O som das moedas no copo do mendigo cego da esquina me era familiar mas não sabia o porquê. Minhas mãos ardiam - como não havia percebido antes? Uma porção de pequenos cortes e marcas vermelhas. Hematomas no pulso esquerdo. O que significava tudo isso? Podia sentir as lembranças indo embora antes de se concretizarem, assim como sentia que o nascer do sol não chegaria tão logo quanto eu queria. Precisávamos de um lugar para dormir.
A rodoviária não era longe. Dormiríamos no ônibus. Não podíamos parar de seguir. Malas para todos os lados, aquele relógio redondo me observando. Passamos por um espelho: só a roupa do couro. Que ônibus sairia mais cedo sem nos custar muito?
Seguimos para Minas Gerais.
As poltronas esburacadas e sujas irradiavam luz e conforto para meus olhos. Semi-deitados, dois zumbis. Mesmo exausta, demorei a cair no sono. A paisagem noturna corria rapidamente enquanto eu mirava o mundo pela janela (que, em um ato de cavalheirismo, ele cedeu para mim.) Olhei para ele. Já dormia. Queria registrar aquela imagem para sempre. Beijei seu rosto, ele sorriu inconsciente. Queria a eternidade naquela estrada, que ela não acabasse. Ignorei a proximidade de Minas, encostei minha cabeça em seu ombro e vivi, porque era o que me restava fazer para jamais perder aquela imagem. Adormeci. Acordei com ele me chamando - o ônibus havia parado. Pela janela, via o sol se derramando pela paisagem não familiar. Saltamos e voltamos a andar para o Norte, a referência mais precisa que tínhamos naquele lugar. Munidos com uma garrafa d'água e um par de óculos escuros para cada, já estava conformada com o vazio. Percebi, no entanto, que estava sozinha nesse sentimento, quando pude observá-lo ajustando a gravata em vão - não para ele. Aqueles pequenos vícios, como manter o cabelo penteado e nunca desabotoar a camisa faziam-no esquecer um pouco a situação que havia se instalado em sua vida. Chegamos ao centro da cidade, procurando algo para comer e um modo de repor a água do cantil.
Entramos em uma loja com atmosfera caseira. Com minha melhor voz de menininha, pedi à velha atrás do balcão por um banheiro e um pouco de água. Ela nos ofereceu um banho. A ducha morna deu um ânimo em nossos espíritos - éramos agora um par apresentável, ligeiramente mais dignos. Agradecemos a senhora mais genuinamente do que jamais havia agradecido alguém. Saímos com os cabelos molhados e a garrafa cheia.
Parados na calcada do centro de cidade desconhecida bebendo água para seguir ao Norte. Norte por falta de opção? Eu queria o Norte: subir, crescer. Chega de regressão. Finalmente eu sorria voluntariamente. O abracei, ele não parecia tão feliz.

- E agora? O caminho não é longo mas os desvios são muitos. Está me ouvindo? - disse ele, se afastando do abraço.
- O caminho da minha ambição é sempre longo.
- Parece que estamos encurralados nesse encruzilhada há dias, há alguns anos. E você só anda pra onde a minha mão aponta.
- Pra onde você quer que eu ande? Você que tomou essa decisão de fugir!
- Precisamente. Ando tomando todas as decisões, por mim e por ti. Não podes se prender assim pra sempre. Aprende a se cuidar sem mim.
- Ótimo! Você acha que eu não posso me cuidar sozinha! Vai embora, volta pra sua vidinha medíocre de paletó. - fui me acalmando gradativamente - Não é isso que você quer? A essência da nossa fuga se diluiu. Já não sei mais do que fugimos. Eu só quero chegar e meu caminho é ao norte. Volta, você tem uma vida que te espera.

Pela sua hesitação, sabia que as palavras que se seguiriam seriam pronunciadas cuidadosamente.

- Você sabe pra onde seguir? - mais uma pausa. - Vai precisar de recursos.
- Você sabe que eu me viro.

Ele me abraçou forte. Seus olhos se encheram de lágrimas mas sua dureza não permitia que as deixasse rolar.
- A gente se fala.

Ele deixou seu paletó e algum dinheiro. Deu meia-volta, eu segui na direção oposta. Chorei, mas sabia o que fazer.
Havia chegado no meu destino. Estava ao Norte; no início de uma ladeira. Subi ansiosa e me deparei com um imenso pasto de grama verde. Me deitei e esperei a noite, apenas pela visão familiar; Uma recepção gelada porém eterna, escura e iluminada.

por anouk e lili

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